- A primeira coisa que tens que saber é que se não falei até recentemente foi por decisão minha…
- Isso eu já tinha percebido, não é preciso ser um génio…
- Calma, ainda não acabei. Não sei porquê mas já nasci assim. Nunca chorei, não tive que reprimir as emoções porque nunca soube o que eram emoções. Habituei-me a mim. Tento perceber todos os dias porque nasci assim e não descubro a resposta. É no mínimo curioso que encontre respostas para tudo na minha, menos para esta questão. Porque razão nasci assim?
- Isso atormenta-te?
- Sim. Mas deixa-me continuar. Como te disse habituei-me ao facto de não ter emoções. Sendo perfeitamente normal e não sentindo qualquer emoção ou sentimento, decidi que não devia falar pois não fazia sentido. Para quê falar? Para dizer o quê? Com que intenção ou objectivo?
Para quê expressar o vazio e o oco?
- E no entanto agora falas comigo…
-Precisamente. Desde sempre pensei que devia manter a minha posição até ao dia em que as premissas mudassem. Algo dentro de mim me dizia que um dia eu havia de sentir necessidade de falar. Confesso que pensei sempre que algo de extraordinário aconteceria na minha vida que me fizesse pensar: “é isto, é este o sinal para eu começar a falar”.
- Então e o que aconteceu?
- Tu aconteceste.
- Desculpa?
- Nunca tinha sentido emoções até ao dia em que te conheci. Nunca tinha sentido vontade de responder a ninguém como senti de te responder a ti quando me desafiaste. Embora eu entenda que não era a mim que desafiavas e sim a meus pais.
- Bom não sei o que dizer. E que emoções foram essas que te fiz sentir?
- Sei que agora ias adorar que te respondesse: amor. No entanto, não sei que emoções são estas. Não te posso ajudar a resolver as tuas dúvidas interiores. Sei que pretendes ver em mim a batalha final da tua luta interior. O tudo ou nada. O momento em que decidirás se as mulheres te completam mais do que os homens…mas não te posso ajudar.

Naquele momento a face de Lara deve ter espelhado completamente o seu embaraço e surpresa. Como é que ele podia saber? Ninguém podia ser tão perspicaz. Como é que ele percebeu? Teria ele ouvido alguma das suas conversas com Joana? Não podia ser, nunca tinha falado com Joana ao telefone perto dele.

- Como é que…
- Como sei que não sabes quem amar? Não interessa. Sei que os teus sentimentos são genuínos, mesmo por essa mulher onde te refugias. As tuas dúvidas também o são. Mas não é comigo que encontrarás as respostas que queres encontrar no homens…
- Porque dizes isso?
- Porque não sou um homem.
- O quê? Como assim, não és um homem?
- Não me obrigues a repetir tudo o que te digo, acho que fui claro. O que queres dizer é que não acreditas. Para te ajudar deixa-me dizer-te que não sou uma mulher.

Estava confusa. Lara não sabia o que pensar. Stanislau tinha razão, como sempre. Havia de facto uma tentativa velada da sua parte de procurar naquele rapaz as respostas que há dois anos sentia precisar. Não sabia o que pensar da informação que Stanislau lhe estava a dar até agora. Mas o que pensar dele? Não era um homem? O que podia ser então?

- Não sei o que pensar.
- Pensas demasiado. Sabes que desde muito cedo que aprendi a canalizar o meu pensamento para o que interessa. Não toldo o meu raciocínio com inutilidades. Não é verdade que sentes amor por essa tua amiga? Não é verdade?
- Acho que sim. Bom, ando confusa em relação a isso. Não sei se lhe posso chamar amor.
- O que entendes por amor então? Se eu te dizer que duas pessoas cantavam juntas toda a vida, cada um cantava uma parte da mesma canção. Um dia um deles faleceu e a partir desse dia, o outro, que lhe foi sempre fiel, passou a cantar apenas a parte da canção da pessoa que faleceu. Achas que sentiam amor um pelo outro?
- Acho que sim.
- Achas que é possível aos animais sentirem amor, por exemplo? Achas que dois animais se podem amar?
- Não. Os animais agem por instinto essencialmente. O amor como o conhecemos não existe entre os animais.
- Pois bem, eu digo-te agora que a história que te contei dos cantores da mesma canção, e onde tu afirmas ver amor, não aconteceu com duas pessoas, mas acontece todos os dias com uma espécie de ave na América do Sul. São pássaros, achas que podem sentir amor?
- Achava que não.
- O amor é demasiado sobrevalorizado. É confundido com muitos sentimentos. Não podes amar mais do que uma pessoa nesta vida? Ou vais dizer-me que há diferentes tipos de amor? Não há só um amor, mas aplicado a diferentes pessoas?
- Talvez. Não sei! Sei lá! Só me estás a confundir, mais nada.

Stanislau estava, com efeito, a confundi-la, propositadamente. Da mesma forma que se limpa um quadro para nele se escrever, assim fazia Stanislau coma sua interlocutora. Questionava as suas certezas e os seus valores para a deixar pronta para receber tudo o que lhe queria ensinar.

- Sabes, Lara, as pessoas são um animal estranho, talvez o mais estranho. Diferentes pessoas, perante a mesma situação, agem de formas tão díspares que é praticamente impossível estabelecer padrões. Mas há um padrão comum a todas as pessoas do mundo: são como icebergs. Podemos ver o topo, mas nunca conseguimos ver tudo. Todas as pessoas vivem dessa forma, com segredos e características que nem elas próprias sabem que têm. Vivem os seus dias tentando projectar aquilo que querem que os outros vejam. Habitualmente projectam a imagem que têm de si próprias, misturada com a imagem que gostavam de transmitir aos outros. Naturalmente, nenhuma das duas é a verdadeira imagem de nós. Somos mentirosos todos os dias da nossa vida. Olhamos todos para a ponta do iceberg uns dos outros sem ver o que está na base, escondido, e que é talvez o que em nós tem mais peso, o mais importante daquilo que somos.
- Desculpa mas acho que não escondo assim tanto dos outros!
- E de ti? Sabes quantas coisas escondes de ti própria? Quando te disse que não sou um homem não fui inteiramente verdadeiro. Em bom rigor sou um homem, mas não um homem comum.
- Não estou a perceber…
- O nosso planeta é um ser vivo, sabias disso?
- Toda a gente sabe disso.
- Acho que não estás a perceber. O nosso planeta é um ser vivo, autónomo, independente, que toma decisões e faz escolhas como todos nós…
- Isso é um bocado rebuscado, Stanislau, mesmo vindo de ti.
- Pois garanto-te que é verdade. O nosso planeta vive como qualquer um de nós. Chama-lhe a mãe natureza se quiseres. Chama-lhe Deus, Alá, Buda, chama-lhe o que quiseres. Ficas hoje a saber, porque to garanto eu, que o planeta onde vives faz uma apreciação de todas as tuas escolhas e interfere com elas. Não decide a tua vida, mas cria toda e qualquer consequência para as tuas escolhas e decisões.
- Desculpa-me mas isso é um dos maiores absurdos que já ouvi.
- Pode até ser, mas vou-te provar que digo a verdade.
- Como?
- Tudo a seu tempo. Vais ter que confiar em mim. Mas isto leva-me ao meu plano…
- Ah, sim, conta-me lá então.

Nesta fase Lara já se perguntava se Stanislau não seria um pouco louco. Na verdade, sentia que algo nele a fazia sentir segura e que podia confiar nele, mas por outro lado, toda aquela história a levava a pensar que talvez se tivesse precipitado no julgamento do rapaz. Será que ele não tinha criado este mundo e decidido viver nele? Será que tudo isto não seria fruto da imaginação que todos achavam que ele não tinha? Lara começava a sentir-se mais insegura em relação a Stanislau, mas estava disposta a saber mais, estava disposta a participar neste jogo durante mais algum tempo.

- Eu sou filho do planeta, e não dos meus pais. O planeta enviou-me para mudar o curso da humanidade.

Lara não conseguiu conter uma gargalhada. Era demasiado ridículo. Stanislau era filho de um planeta que vivia como todos nós e que interferia nas vidas de todos os seus habitantes, de uma forma estranha. Acima de tudo, parecia-lhe ridículo que aquele rapaz à sua frente tivesse sido enviado para mudar o curso de toda a humanidade.

- Ousas rir do que te digo? Digo-te finalmente a verdade e a tu reages ridicularizando o que digo?
- O que esperavas? Isso que dizes não faz qualquer sentido! Não és filho dos teus pais? Filho do planeta? Achas que foste enviado para mudar a humanidade? Deixa que te diga, Stanislau, os hospitais psiquiátricos estão repletos de gente que diz o mesmo. Desculpa mas não estou para isto! Vou sair e vou ligar ao meu pai para me vir buscar.
- Porquê? Precisas de provas é? É isso?
- Duvido que mas possas dar.
- Posso, mas não quero! Não tens o direito de me exigir provas. Dei-te o privilégio de fazeres parte disto mas talvez não o mereças. Talvez me tenha precipitado. Podes sair.
- Posso sair?! Eu é que quero sair!! Adeus.

Quando Lara saiu e bateu com a porta Stanislau ficou no quarto, sozinho, a lidar com a complexidade nova que o assolava. Nunca se tinha sentido assim, exaltado, nervoso, sem saber o que pensar. Lara provocara-lhe uma reacção completamente diferente de tudo o que já tinha sentido na vida. Só podia ser ela. Mas se era ela o sinal, porque diabo ela não acreditava? Porque raio o tinha ridicularizado? Tentou colocar-se no lugar dela. Espreitou pela janela e lá estava ela, já no jardim, ao telefone. Provavelmente o pai não tinha atendido porque baixou agressivamente o braço que segurava o telemóvel e começou a olhar em volta batendo o pé de forma nervosa. Continuava linda, mesmo assim chateada não perdia aquela altivez, quase realeza, que a tornava tão diferente, tão especial.

Stanislau pensou que era normal ela não acreditar, no lugar dela pensaria da mesma forma. Foi tão ingénuo na forma como lidou com ela. O ascendente sobre ela não era tão forte assim. Substimou-a. Agora, não a podia deixar ir embora, ou podia perdê-la para sempre. Só havia uma coisa a fazer: tinha que lhe dar provas do que dizia.

Lara aguardava que o pai lhe devolvesse a chamada e já estava a ficar impaciente. Era sempre tão complicado falar com pai. Por vezes demorava horas até lhe devolver uma chamada sua, mas devolvia sempre. Sorriu. Não valia a pena preocupar-se. Nesse momento começou a sentir uma sensação estranha nos pés. Sentiu que o vento agitava as folhas do jardim à sua volta. Algumas folhas erguiam-se à sua frente e sentia que algumas lhe tocavam nas costas. Pensou que devia estar a ser apanhada no meio de um pequeno remoinho. Olhou novamente para o chão e ficou completamente estarrecida. Os seus pés não estavam no solo. Debaixo de si um tapete de folhas pairava a cerca de um palmo do chão e várias folhas voavam, como borboletas, à sua volta. De repente, o tapete de folhas rodou e ela, em cima dele, rodou também, lentamente, até ficar de frente para a casa. Depois, sentiu-se descer suavemente, até que tudo acabou, as folhas caíram no chão e o tapete debaixo dos seus pés voltou a ser apenas uma amálgama de folhas espalhadas pelo jardim. Levantou a cabeça e viu Stanislau à janela, sorrindo, com ar de desafio.
O seu telemóvel tocou.

- Não pai, liguei para ti sem querer.

- Não, não preciso de nada. Quando quiser que me venhas buscar ligo, pode ser?

- Até logo.

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