- Tenho uma notícia para te dar…
- Então?
- Ele acabou de morrer.
- Então estou perdido.
- Porquê?
- Como posso agora desculpar-me? Como posso aliviar o peso do arrependimento? Vou viver com esta mágoa para sempre.
- Qual mágoa? Do que estás a falar? Não fizeste nada!
- Precisamente. Entre tudo o que não fiz está o facto de não lhe ter dado ouvidos. Agora é tarde.


No nosso mundo, no nosso pretensioso mundo, como devemos distinguir a ilusão da realidade? Parece fácil. Como distinguir o bem do mal? Parece fácil. Como distinguir a verdade da mentira? Parece fácil. Na verdade, porém, todas estas questões não passam de uma falácia.

A história de uma criança pode contar-nos alguns aspectos importantes da sua vida; a história de um adulto, habitualmente, ou os confirma ou os desmente. Nem sempre o que fomos se revela a base do que somos. Eu sou um exemplo disso. A nossa infância não tem que nos condicionar. Se fomos vencidos, hoje podemos ser vencedores, e o contrário será igualmente verdade.
O que acontece então quando a criança se revela um enigma? Uma incógnita a todos os níveis?
Certamente haverá traços da sua personalidade que se revelam desde muito cedo, que nos permitem antever, mesmo que num mero esboço, o homem que pode vir a tornar-se.
Mas o que acontece quando a criança se revela diferente? Nem boa, nem má; Nem honesta, nem mentirosa; Nem virtuosa, nem falhada. Apenas diferente.

Chamava-se Stanislau porque o pai gostava do nome. Nunca disse a ninguém porquê. Contudo, secretamente, acreditava que o nome de alguém pode ajudar à definição da pessoa, à sua construção humana. Naquele caso, e a bem da verdade, não sei se teria razão, ou não, o seu progenitor. A mãe deu-lhe todo o carinho do mundo, pelo menos tanto quanto uma mãe extremosa pode dar. Todo o que existe.
A criança revelou-se precoce em quase tudo: começou a andar quando maior parte dos petizes nem gatinha. Começou a escrever quando a maior parte dos seus pares começava apenas a dizer as primeiras palavras. Era, de facto, uma criança de evolução assinalável, e deveras prematura em quase todas as proezas pueris, com excepção de uma: por mais que os pais criassem incentivos e tentassem ajudar, Stanislau não falava.
Tal facto, por muito estranho que fosse, poderia ser contornado com o facto de escrever desde muito cedo. Contudo, talvez por decisão do pequeno, a escrita não era utilizada para comunicar. Chegava a ser assustador, quando a meio da lida doméstica, de tal forma se formava um silêncio, que a criança era esquecida, até que a mãe de repente cruzava os seus olhos com os do miúdo e verificava que ele a observava com muita atenção. Parecia absorver, como uma esponja, tudo o que acontecia à sua volta.
O que mais aterrorizava os pais era a dificuldade que tinham em perceber as necessidades do pequeno Stanislau. Nunca chorou. Levaram-no a vários especialistas. Não havia nada de errado com ele. Cientificamente, tudo indicava que devia falar e produzir sons normalmente. No entanto, nunca ouviram um único som da sua boca. Nunca esboçou uma tentativa de comunicação, nem por gestos. A ideia que transparecia a todos era a de que se escusava a comunicar, com quem quer que fosse.
Os seus pais martirizavam-se pensando em formas de o levar a comunicar, a exprimir-se de alguma forma. Sem sucesso. Stanislau, foi ficando mais evidente com os anos, não pretendia comunicar. Bastava-lhe ouvir.

Os seus problemas começaram na escola, quando se tornou claro, para os outros miúdos, que ali estava alguém diferente. Invariavelmente, a diferença é tratada com uma dose importante de crueldade, e inicialmente sofreu alguma. Mas até nisso Stanislau não era igual aos demais. Curiosamente, as outras crianças acabaram respeitando o seu silêncio.
Com excepção da total ausência de participação nas aulas, ele era um bom aluno, dos melhores. A rapidez com que absorvia informação era invulgar e, na verdade, os professores achavam prodigioso o seu avanço nas matérias. Na maior parte delas quedava-se muito à frente dos seus pares. No entanto, podiam contar apenas com esses conhecimentos nas fichas de avaliação, única altura em que ele decidia responder ao que lhe era questionado. Recusava-se a ir ao quadro e passava todo o tempo de recreio sentado numa cadeira a ver os outros miúdos. Os outros miúdos olhavam para ele como se fosse o infame portador de uma deficiência. Não deixava de ser curioso este pensamento, dado que na raiz daquela palavra está uma outra, nos seus antípodas, a eficiência.


- Acalma-te Chico, aquela mulher não te vai fazer mal…
- Juro-te que é ela Paulo, não estou enganado! Ela vai matar-me…
- Chico, calma, aquela é a minha mulher, a Gabriela!

- Paulo, eu sei que estás muito contente por teres encontrado a Gabriela, mas temos que sair daqui depressa…
- Por amor de Deus, Joana, não te estou a perceber…
-Não?! Estás burro!? Como é que ela nos encontrou? Por acaso disseste para onde vínhamos?


-Paulo, se ela está aqui é pelo Chico, não é por mais nada, não percebes? Ele tem razão…deve ser ela!
- Não posso acreditar numa coisa dessas…como é que…
- Não sei Paulo, mas agora vamos embora…pensas nisso mais tarde, vamos! Chico?

- Chico! Olha, Paulo, ele está ali à beira do cais! Chico!!!



- Chico, o que estás a fazer, vem connosco, temos que fugir…
- Paulo, não consigo, é ela que me está a fazer isto, estou a sentir algo a puxar-me para a água…ajuda-me!
- Agarra a minha mão!

- Porra, estás gelado! E estás a gelar-me também…
- Larga-me, Paulo, não há nada a fazer…eu mereço!
- Chico! Chicooo!


- Deixa-o, é inteiramente merecido, não achas?
- Gabriela!
- Essa tua tentativa ridícula de o salvar enoja-me.
- Como foste capaz, Gabriela?
- Como fui capaz? E não te perguntas como foram aqueles animais capazes?!
- Eu sei o que eles te fizeram, foi horrível, mas porque nunca me contaste, eu podia ajudar-te!
-E ajudaste, Paulo, ajudaste a que o meu plano resultasse. Afinal de contas trouxeste o Pedro até mim…
- Mas como foi possível ele não te reconhecer?
- Quem te disse que não me reconheceu?
- Não pode ser…
- Desculpou-se logo que me apanhou sozinha a primeira vez! Já que aqui estás Joana, queres que te conte o que ele me disse? Foi qualquer coisa como: “Gabriela, espero que me possas desculpar, éramos miúdos, e sabes como são os miúdos, por vezes têm brincadeiras estranhas…mas está tudo bem entre nós certo?”
- Não acredito nisso…
- Acredita no que quiseres. Por mim podes morrer também…


-Gabriela, pára! O que estás a fazer? Deixa a Joana em paz, ela não faz nada, o que estás a fazer? Pára! Joana, foge! Foge daqui!




- Gabriela, como pudeste matar a Joana?! Que mal é que ela te fez? Tu não estás em ti!Que poder é esse que tens? É o Rio não é? Também te banhaste no rio não foi!?
- Tive que me lavar sabes. Não é muito agradável ser violada com um pau enorme e ser enterrada logo de seguida. Pensei que morria ali! Fazes ideia do que é passar por isso? FAZES?!
- Obviamente que não…não sei o que dizer…deve ter sido horrível.
- Foi muito mais do que isso! Eu morri naquele dia e no mesmo dia renasci. Eu sou a face do terror que vivi. Transformei esse terror, primeiro em raiva, depois em fúria e depois em audácia e desejo de vingança. Eu não os podia deixar ficar impunes percebes?
- Mas a Joana…que mal te fez?
- O que achas que ela ia fazer com toda esta informação? Eu não estaria segura. Achas justo que eu pague por isto? Achas?
- Não. Não acho, mas eu sou suspeito…
- Porquê?
- Porque te amo. Anda cá, abraça-me!
- Estás a falar a sério? Achas que ainda podemos ser felizes os dois?
- Felizes? Não sei. Mas não há felicidade no mundo que eu troque pela eternidade ao teu lado.
- Achas que algum dia me vais perdoar?
- Só se me prometeres também o teu perdão…
- Eu? Perdoar-te? Porquê?
- Por isto…





- Desculpa, Gabriela, mas tinha que ser. Não podes viver, percebes? É O Rio sabes?! Eh! Eh! Eh!. Não são esses os seus planos para nós.
- Mas p…po..porquê? Paulo…
- Shhhh! Deixa que a morte venha, não resistas.
- Mas…mas…tu…nunca foste ao Rio, não percebo…
- Não preciso, Gabriela, eu sou O Rio! Eu controlo tudo o que lá acontece! Agora, se não te importas, morre, por favor.


- Estávamos por ali todos a brincar, quando olhámos para a água no rio e vimos uma coisa estranha…
- Que coisa?
- A água do rio mudou ligeiramente de cor e começou a ondular, mas apenas numa zona muito específica, parecia formar um círculo perfeito! Muitos dos miúdos fugiram com medo. Mas não fomos todos embora. Lá permanecemos eu, o Tiago, o Pedro e uma miúda que até hoje não sei como é que se chamava...
- E então, o que era aquilo na água?
- Calma. Depois começámos todos a falar uns com os outros, estávamos com curiosidade mas tínhamos medo. Até que o Tiago, que era sempre o mais atrevido, saltou para água e nadou até ao círculo. Lembro-me perfeitamente que depois de lá chegar começou a simular que se estava a afogar, só para se meter connosco. Mas depois de passada a brincadeira a expressão dele mudou! Parecia bastante satisfeito e começou a gritar para irmos ter com ele, que a água ali estava quente e que provocava uma “sensação altamente”! A princípio ficámos reticentes mas depois, um a um, fomos ter com ele.
- E depois?
- Efectivamente, a sensação de prazer, naquela zona do rio, era inexplicável. Aquilo mexeu connosco, começámos a olhar uns para os outros e parecia que conseguíamos ler os pensamentos uns dos outros, todos em perfeita sintonia, como se fôssemos um só. Não sei como vos explicar isto melhor, mas era como se o rio nos tivesse unido com um único propósito.
Foi então que reparámos que a miúda ainda estava na margem do rio. Não tinha vindo ter connosco. De repente, olhámos uns para os outros e percebemos o que tínhamos que fazer. Na mente de todos nós, sem excepção, passou a mesma ideia. Tínhamos que ir até à margem ter com ela.
- Ter com ela? Para quê?
- Desculpem, não me julguem, mas a ideia que nos passou a todos pela cabeça foi…matá-la!
- O quê? Mas vocês eram miúdos pá!
- Foi o rio! Não percebem. Nadámos até à margem e nem precisámos de falar uns com os outros. Eu agarrei-a pelos braços, o Pedro pelas pernas e o Tiago começou a despi-la. Percebemos imediatamente que a ideia era torturá-la. O Tiago foi buscar um pau e…desculpem, mas eu nunca mais tinha falado nisto…desculpem.
- Chico, o que está feito não tem remédio. Não vale a pena chorares. Ninguém te está a julgar. Já todos percebemos que há aqui um conjunto de atenuantes sobrenaturais para o que vocês fizeram. Continua, é importante sabermos tudo.
- Bom, depois o Tiago enfiou-lhe com violência o pau na vagina e começou a penetrá-la repetidamente…
- Meu Deus do céu!
- Foi horrível. Entre as pernas dela não se via já mais do que sangue. Julgo que ela desmaiou quando o Tiago finalmente lhe deu com o pau na cabeça. Percebemos que ela já não estava a oferecer resistência e largámos o corpo dela. Depois, sem pensar duas vezes, abrimos uma cova, com as nossas próprias mãos, parecíamos cães. Nas nossas faces, inexplicavelmente, via-se prazer e regozijo. Não se via ódio nem violência, mas sim um prazer estúpido, como se aquilo fosse só mais um jogo dos nossos.
-Estou parvo…então e depois?
- Depois nada. Voltámos ao rio para nos passarmos por água, ficámos deitados nas ervas até secar a roupa e fomos embora. Nunca falámos sobre isto, nunca discutimos o assunto e nunca mais ouvimos falar daquela pobre miúda.
- Desculpa, Chico, não sei o que dizer…nem o que sinto acerca disto…
- E como achas que me sinto…não voltei a pensar nesta merda até hoje! Estou aterrorizado! Acho que isto para nós foi como um episódio da nossa vida que esquecemos de forma automática. Digo-te, com franqueza, que é como se me lembrasse de tudo na perfeição, mas algo me impedisse de pensar nisso estes anos todos. Nunca senti remorsos até hoje…
- Era importante tentares lembrar-te de mais alguma coisa…o que fizeram está errado, mas acho que ninguém merece o que eu vi na minha banheira. Desculpem falar assim…
- Pois, mas isto é tudo o que eu me lembro…mas porquê, o que achas de tudo isto?
- Acho que a miúda não morreu…
- Impossível, ela foi enterrada! Eu vi!
- Vocês eram miúdos, enterraram-na perto do rio, onde a terra é argilosa certamente, talvez numa cova superficial…
- Não sei, desculpa, não sei…não me lembro…
- Tenta lembrar-te do nome, da família dela...vocês tinham que a chamar nas brincadeiras…
- Não. Do nome não me consigo lembrar…mas…
- Mas o quê?



- Mas sei que ela se transformou numa bela mulher…
- O quê? Mas como é que sabes isso?
- Porque ela vem ali, agora mesmo, na nossa direcção!
- Tens a certeza que é ela?
- Jamais esqueceria aquela cara…nem que passassem mais 20 anos! Ajudem-me por favor tirem-me daqui!


No caminho não trocaram mais do que duas palavras. O Paulo estava demasiado preocupado com a Gabriela, mais do que queria demonstrar. Não podia esquecer que um dos seus grandes amigos, e marido da mulher que viajava ao seu lado, acabara de morrer em circunstâncias trágicas e misteriosas. Era precisamente a vontade de desvendar desse mistério que agora o motivava.
Joana, por seu lado, estava ainda em choque. Toda a tristeza que lhe causava a morte do marido era abafada, ainda, pela estranheza de todos os acontecimentos. Não sabia o que pensar mas haveria de chorar e sofrer ainda muito, logo que tudo fosse explicado e o seu corpo e mente se unissem para chegar à terrível hora de constatar que agora estava só, porque o amor da sua vida jazia inerte numa banheira.

- Olha, aquele deve ser o tal Chico…
- Sim, ele deve estar à nossa espera.



- Boa noite!
- Boa noite. Chico? Certo?
- Certo. Muito prazer.
- Bom, eu sou o Paulo, e aproveito para apresentar a Joana, mulher…bom, agora viúva, do Pedro.
- Estou em choque. Não esperava por esta. Quando vi a chamada do Pedro pensei que era algum engano. Mais convencido disso fiquei quando ouvi a mensagem. Tentei ligar de volta para esclarecer com ele, e foi quando falámos…
- Aí reside para já um problema! O Pedro estava já morto há hora que tu dizes que ele ligou…
- Tenho aqui o registo da chamada, Paulo, verifica tu mesmo…

- Pois. Tens razão. E isso é só mais um mistério por explicar…
- Mas há mais?
- Nem imaginas…acho eu…conhecias o Tiago?
- Qual Tiago?
- Um que era vizinho do Pedro quando vivia com os pais…
- Ah, sim claro! Éramos todos amigos…mas porque é que falas dele no passado? Não me digas que também morreu!?
- Isso mesmo. O Pedro recebeu essa notícia hoje de manhã…
- Meu Deus! E então, como é que ele morreu?
- Não se sabe muito bem, mas isso não é o mais estranho…
- Então?
- O Pedro recebeu uma chamada do Tiago, imediatamente a seguir a ser informado da sua morte…
- Não posso acreditar! A sério? A dizer o quê?!
- Não me disse. Mas quase que posso adivinhar que terá sido qualquer coisa do género: “A seguir és tu…”.
- Achas?
- Ainda não perceberam…primeiro morre o Tiago e o Pedro recebe a chamada, depois morre o Pedro e tu recebes a chamada!! O próximo só podes ser tu, Chico!
- Porra, nem me digas uma coisa dessas! O que é que faço agora?

- Paulo?
- Sim, Joana.
- Fala-lhe da data…
-Ah, é verdade!

- Qual data Paulo?
- Quando estávamos em minha casa, a água da banheira onde encontrámos o Pedro começou a ferver…
- A ferver?
- Espera, deixa-me acabar…a água começou a ferver e embaciou o espelho. Nesse momento começaram a desenhar-se alguns números que formaram uma data.
- Que data?
- 12-08-1986



- Que cara é essa Chico?

- Chico!?
-Eu sabia…eu sabia…
- Mas sabias o quê?
- Isto ia acabar por se virar contra nós…
- Isto o quê pá?? Fala de uma vez!

- Chico? Conta-me tudo já! Estou preocupado com a minha mulher que desapareceu de casa e nem sei o que sou capaz de te fazer! DESEMBUCHA!!!
- Bom, vou contar-vos algo que nunca contei a ninguém. Mas acho que a situação exige que o faça. Vocês têm que saber.
- Estamos a ouvir, vá, conta lá…
- Em Agosto de 86, nesse dia, estávamos todos a brincar à beira do rio. Era uma coisa que fazíamos com frequência, especialmente nas férias de Verão. Aquela zona do rio era particularmente engraçada porque fazia um pequeno açude onde aproveitávamos para dar uns mergulhos ao final da tarde. Éramos miúdos, passávamos o dia com aquelas brincadeiras habituais, a apanhada, a macaca, bom vocês sabem, são da mesma geração. Era a nossa diversão…levávamos lanche e por ali ficávamos horas naquilo. Naquele dia, no entanto, estávamos todos longe de imaginar o que estava para acontecer…
- Oh homem, tu queres matar-me de curiosidade! Conta logo de uma vez!
- Desculpa, Paulo, mas ainda me custa falar sobre isso…mas pronto, adiante! Estava eu a dizer que aconteceu algo naquele dia que nos afectou a todos. Algo que, na verdade, viria a mudar as nossas vidas!


- Antes de sairmos de casa disseste que estavas preocupado com a Gabriela, porquê?
- Porque me pareceu muito estranha e…com muito medo do Pedro!
- Do Pedro? Mas porquê? Que mal lhe poderia ele fazer?
- Não sei. Mas algo me diz que vamos encontrar um Pedro muito diferente do habitual, muito alterado…
- Credo! Nem digas isso! O que é que podia acontecer para o deixar alterado ao ponto de a Gabriela estar com medo?
- Bom, Joana, vamos esperar para ver, já estamos a chegar…






- Meu Deus!
- Tens a casa virada do avesso, Paulo!
- Pois, isso já vi…mas onde estarão os dois? Gabriela? Estás cá?

- Pedro? Pedro? Está cá alguém?
- Paulo, acho que se estivessem já tinham respondido…
- Deixa-me ir ver lá dentro…espera aqui…



- Que cara é essa, Paulo? O que é que viste lá dentro? Eles estão lá?
- Só o Pedro.
- E então ele está bem? Onde é que ele está? Quero falar com ele…
- Acho melhor não…
- Larga-me Paulo, quero ver o Pedro, o que se passa?
- O Pedro está lá dentro…morto!
- O quê? Como? Não é possível…quero vê-lo…
- Acho melhor não o fazeres, Joana, não é uma visão bonita! Agora temos que chamar a polícia…não…Joana…não, não vás lá…fica aqui!!



- AAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHH!!
- Eu avisei-te Joana, anda cá, não olhes para lá…
- Não! Não! Como é que isto foi acontecer Paulo? Como?

A visão de Pedro, morto, na banheira, não era de facto a mais bela. Ali jazia o seu corpo sem vida, roxo, com se ali se tivesse afogado. Uma ideia ridícula, na melhor das hipóteses, tendo em conta a quantidade de água. O couro cabeludo parecia ter sido arrancado cirurgicamente, bem como cada uma das suas unhas. Os olhos abertos, vítreos e secos, fitavam o espelho, como se ali estivesse algo de muito importante, ou como se ali estivesse a última coisa importante digna de ser vista em vida.

- Acalma-te, vá, chora à vontade….anda, vamos para a sala…temos que chamar a polícia…acalma-te.
- Não me quero acalmar Paulo! Como queres que me acalme?! Olha para o estado dele?

- Espera…olha para a água que está na banheira…está a borbulhar…
- Como? Não pode estar quente…e além disso há pouco não estava assim…
- Olha como ferve…é como se estivesse…já viste, a velocidade a que ferve?
- Já, e acho que não é por acaso…
- O que queres dizer com isso?
- Olha para o espelho! Está a embaciar…
- Sim e depois…
- Olha com mais atenção.
- Ah, estão a aparecer letras desenhadas…
- Sim, e já viste o que dizem?
- Espera…deixa-me ver…



12-08-1986
- É uma data, mas, Paulo, como é que explicas isto?
- Não sei, Joana, desculpa, mas não sinto que haja uma explicação racional para isto: o estado do Pedro, a voz da Gabriela ao telefone, e agora não saber dela, a água que começa a ferver, letras a desenharem-se no espelho…Joana, há algo de sobrenatural em torno de todos estes acontecimentos, apenas não percebo o quê, mas garanto-te que vou…

- O que é isto? É o teu telemóvel, Paulo?
- Não, isso não é o meu toque. Será o teu?
- O meu não é de certeza!

- Espera, olha ali no chão, é o telemóvel do Pedro?
- É, acho que sim! Vai lá ver Paulo, não me consigo aproximar…
...
- É um tal de Chico, conheces?
- Não, quer dizer…acho que não…
- Vou atender. Estou?

- Com quem é que queria falar?

- Com o Pedro? Como? A devolver uma chamada?

- Desculpe mas isso é impossível…

- Porquê? Porque ele está morto, eis o porquê!

- Impossível? Oh homem, estou a dizer-lhe! Como é que ele pode ter ligado há cinco minutos?

- Não, amigo, vai-me desculpar mas essa insistência já roça o desagradável…

- Como? Tem a certeza?

- Importa-se que falemos pessoalmente?

- Muito bem…sim…conheço perfeitamente…vou já para aí!

- Com certeza, até já.


- O que foi Paulo, quem era?
- Aparentemente, um amigo do Pedro, um amigo de há muitos anos…
- Porra, não conheço esse amigo dele!
- Já não falavam há alguns anos…
- E o que é que ele disse? O Pedro ligou-lhe?
- Há cinco minutos.
- Ambos sabemos que isso é impossível…
- Pois, mas há uma mensagem de voz…
- Impossível!
- Achas? Tão impossível como o que vimos na água e no espelho!
- Tens razão…e agora…vamos lá?
- Claro, quero uma explicação para o que tenho na minha banheira…e além disso quero uma pista para o paradeiro da Gabriela…ela desapareceu…lembras-te?
- Tens razão, desculpa, só pensei no Pedro e nem me lembrei que não sabes da tua mulher, que egoísta…
- Esquece isso, agora temos que nos despachar…tenho receio de não chegar a tempo…
- A tempo? Porquê?
- Por causa da mensagem que ele diz que o Pedro deixou…
-Qual mensagem? O que é que o Pedro lhe disse?
- “Prepara-te…a seguir és tu!”


- Porra! Mas qual Tiago? O que morreu?
- Sim!
- E vais ficar aí especado a olhar para o telemóvel? Não atendes?
- Sei lá, foda-se! Acabaram de me dizer que ele morreu e agora o número dele toca no meu telemóvel?!!
- Atende antes que desliguem!

- Estou?

- Estou?!

- Tem que falar mais alto! Não estou a ouvir nada!

- Porra! ESTOU! Está aí alguém?







- Pedro, então? Disseram alguma coisa?
- Aahm, não…não disseram…
- Então porque é que estás com essa cara?
- O quê?
- Estás branco! Devias olhar para ti! O que é que ouviste…
- Nada.
- Vai-te lixar, tu não ias ficar assim por nada! Diz-me de uma vez!
- Paulo, desculpa, mas dá-me o dia de hoje…eu não me sinto muito bem…depois desconta-me nas férias…
- Descontar, porra Pedro, essa conversa não é para nós pá…se queres sair vai à vontade…mas deixas-me preocupado…
- Não te preocupes, está tudo bem, mas lembrei-me que tenho um assunto para tratar e…
- Desculpa lá, mas tretas é que não! Não precisas de me mentir!
- Desculpa, tens razão. Olha, por agora não te posso dizer nada, mas prometo que depois te explico tudo. Devo-te isso.
- Ok, não digas mais nada, estamos combinados! Mas olha que depois vou-te cobrar, vais ter que contar tudo e com direito a jantar pago e tudo. Vá, vai lá e vê se te animas! Se precisares de mim…
- Já sei Paulo. Obrigado, és um amigalhaço a valer! Tenho que ir. Depois falamos.




- Estou?
- …
- Sim, é o Paulo. Quem fala?
- …
- Oh pá! Olá Joana, estás boa? Desculpa lá mas não te conheço este número.
- …
- De casa da mãe do Pedro? Então, mas aconteceu alguma coisa?
- …
- Porquê? O Pedro está bem? Aconteceu alguma coisa?
- …
- Desapareceu? Como assim? Pronto, pronto, acalma-te, não chores. Diz-me onde fica isso que eu vou ter contigo já.
- …
- Não te preocupes. Faço questão…vou deixar instruções à Gabriela para o caso de ele vir até aqui…
-…
- Ok. Oh que estupidez, claro que sei onde é, já aí fui uma vez com o Pedro. Vá…falamos depois melhor…até já.



- Olá Joana. Boa noite.
- Olá, Paulo. Ainda bem que vieste. A mãe do Pedro está lá dentro inconsolável e já me estava a fazer mal estar aqui com ela sozinha.
- Tudo bem, não me custa nada, sabes que também fiquei preocupado…
- Pois, isto foi tudo muito estranho, ele de manhã já estava estranho…
- Eu sei, no escritório estava igual, parecia apático…
- Parece que veio a meio da tarde aqui a casa dos pais do Tiago, aos gritos…
- Do Tiago que morreu?
- Sim, como é que sabes? Estavas ao pé dele quando a Dª Lurdes lhe ligou?
- Estava.
- Ele ficou muito abalado?
- Não, nada. Pelo menos com esse telefonema…
- Com esse porquê? Ele recebeu outro telefonema?
-Sim. E não vais acreditar de quem…
- Então? Quem ligou?
- O Tiago!
- O que morreu?!
- Sim.
- Isso explica muita coisa!
- Porquê? Explica o quê?
- Comecei a contar e depois não acabei…mas parece que ele chegou a casa dos pais do Tiago aos gritos, a perguntar pelo Tiago, porque ele tinha que estar vivo e a pedir para ver o telemóvel dele…
- E eles mostraram-lhe o telemóvel?
- Acho que não. Como deves imaginar ficaram bastante abalados!
- Coitados.
- Mas como raio é que o Tiago lhe ia ligar?? Está morto!
- Não sei, mas houve alguma coisa que ele ouviu do outro lado que o deixou muito abalado…foi quando me pediu para sair…
- Estou farta de lhe ligar e a mãe também, desde que soube o que ele tinha feito. Tem o telemóvel desligado. Estou muito preocupada Paulo…não sei o que fazer…isto não é nada do Pedro…
- Pronto, vá, acalma-te. Ele é sempre muito racional, certamente isto vai tudo ficar em pratos limpos. Olha, o meu telefone…

- É a Gabriela, desculpa, tenho que atender, o Pedro pode ter ido lá…
...
-Estou amor!

- Calma! Acalma-te! Mas ele ainda está aí?

- E como é que ele está?

- Como?

- É melhor eu ir já para aí! Não o deixes sair daí, nem que tenhas que chamar alguém!!

- Até já!

- Joana, vai avisar a tua sogra que o Pedro está lá em casa.
- E ele está bem?
- Bem, não sei…diz-lhe só que depois lhe ligamos a dizer como ele está…
- Oh Paulo, aconteceu-lhe alguma coisa? Diz-me por favor!
- Vamos embora. Não é com ele que estou preocupado…é com a Gabriela!


- Negro?
- Sim, negro! Olha para isto! Chega-te lá aqui ao espelho.
- Tens razão. Está um bocado negro. O que é que me andaste a fazer à noite?
- Eu!?!?
- Apanhas-me a dormir e apertas-me logo o pescoço! Eh! Eh!
- Estás a brincar mas isso está um bocado feio…
- Devo ter dado um mau jeito durante a noite…não te esqueças que tive uma noite agitada.
- Bom, vai lá trabalhar, mas logo temos que ver isso…




- Pedro! Pedro!
- Sim…hmmm…desculpa…
- Tu estás bem?
- Estou, desculpa, acho que estava distraído…
- Distraído?! Parecia que estavas em transe!
- Pois…desculpa…
- Primeiro, chegas atrasado, o que não é nada normal. Depois, parece que não estás cá. O que é que se passa contigo hoje?
- Nada, acordei um bocado estranho, é só isso…
- O que é que foi isso no pescoço?
- Nada, acordei assim…
- Acordaste assim…desculpa lá perguntar-te isto, mas…está tudo bem lá em casa?
- Hmm? O quê?! Que disparate, Paulo, está tudo bem…não acredito que penses que…
- Não penso nada. Vai com calma, fiz a pergunta como teu amigo e não como teu chefe…tens que admitir que o teu comportamento, juntamente com o estado do teu pescoço…deixa-nos a pensar…
- Ok. Mas podes estar descansado, garanto-te. Olha desculpa, deixa-me atender esta chamada. Se eu não atender a minha mãe vou andar alguns dias a ouvir das boas.
- Claro, claro! Eu sei como é, acredita…é melhor atenderes. Depois falamos melhor…

- Estou, Mãe…

- Claro que estou a trabalhar, onde querias que estivesse?

- De férias? Então eu não te avisava se fosse de férias para algum lado?

- Oh, Mãe, pronto, esqueci-me de te avisar daquela vez, mas não quer dizer que agora faça tudo sem saberes!

- Já sei, já sei…olha, Mãe, como te disse estou no trabalho…o que me querias dizer?

- O quê? O Tiago? Como?

- Porra, como é que acontece uma coisa assim?

- E ninguém deu por nada?

- Acho isso estranho! Mas quem te contou?

- Pois…não sei se terá sido mesmo assim ou não…

- Não, eu estou bem, mas isto deixa-me um bocado abalado, é só isso…

- Oh, Mãe, é claro que vou ao funeral. Apesar de estarmos mais distantes há alguns anos, o Tiago nunca deixou de ser meu amigo!

- Ainda não sei a que horas saio. Depois falamos.

- Está bem. Obrigado. Até logo.



- Pedro, desculpa, não pude deixar de ouvir…aconteceu alguma coisa?
- Eh pá, Paulo, parece que morreu um amigo meu, o Tiago…ainda não se sabe bem como…
- Olha o teu telefone….parece que hoje estás concorrido…
- Desculpa lá, espero bem que não seja outra vez a minha….eh, pá! Não pode ser…
- O que foi?


- Mas quem é que te está a ligar?
- Eh pá, de acordo com o que diz o meu telemóvel…é o Tiago!


Naquela tarde as crianças brincavam como se a vida não fosse mais do que risos cristalinos e estridentes. A felicidade tomava-lhes o rosto. Uma felicidade tipica de quem ainda não foi corrompido pelos tentáculos sujos da vida.
À beira rio, jogavam à bola, à apanhada, e a outros tantos jogos que com o passar dos anos deixam de fazer sentido, mas que, naquele fulgor máximo da juventude, revestem-se de uma magia extraordinária: a magia de sermos felizes.
Mas como em qualquer espectáculo, a magia é um objectivo atingido através de um meio pérfido e audaz: a ilusão.
Naquela tarde a felicidade não era mais do que ilusão porque algo estava prestes a acontecer que mudaria as suas vidas para sempre.
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- Pedro! Pedro!
- Hmmm...
- Acorda, Pedro, vais atrasar-te para o trabalho!
- Hmmm, mas o despertador já tocou?
- Há vinte minutos!
- Pronto, pronto, olha...já me estou a levantar...primeiro um dedo, vês?
- Ainda brincas!! Estou a ver se não te atrasas...
- Agora o braço...vês o braço? Não me posso levantar de repente! Eh! Eh!
- Muita piadinha, muita mesmo, senhor Pedro! Quero ver se também vais explicar ao teu chefe porque te atrasaste...primeiro com um dentinho, depois com essa lábia toda! Ah! Ah!
- Já estou a ir para o banho! Convenceste-me!
- Mas agora a sério, porque adormeceste, nem parece teu...
- Não sei bem, nem ouvi o despertador tocar, acho que tive um sonho estranho.
- Um sonho? Que sonho?
- Perguntas bem...não sei bem...acho que já não me lembro...
- Lembras-te sempre do que sonhas! Não te lembras ou não me queres contar?
- Oh, Joana, que raio de ideia! Não me lembro, que é queres que te faça?
- Só achei estranho, é só isso...
- Não penses mais nisso, agora deixa-me ir tomar banho, para não me atrasar mais.
...
...
...
...
- Pedro! Pedro! Não achas que estás à muito tempo no banho?
...
...
- Pedro!? Não me ouves a chamar?
...
- Pedro? O que é que se passa contigo? PEDRO!
- Hmm? Diz!
- Diz?! Diz?! Estou a chamar-te há minutos e tu estás aqui no banho sem dizer nada?
- Não te ouvi...
- Não me ouviste? Gritei o teu nome em frente à tua cara! Parecia que estavas hipnotizado! O que é que se passa?
- Não sei, se calhar adormeci...
- De olhos abertos?
- Sei lá! O que é que queres? Há pessoas que dormem de olhos abertos!
- Sim, claro, de olhos abertos, a tomar banho, com pessoas a gritar por elas...
- Joana, não dramatizes...vamos parar com esta conversa...tenho que me despachar...dá-me a toalha...
- Tudo bem, mas promete-me que vais com cuidado, estou a achar-te muito estranho hoje...
- Fica descansada, eu vou sempre com cuidado.
...
...
- Vá, girafa, até logo.
- Detesto que me chames girafa!! Que mania...
- Com esse pescoço alto e lindo...o que é que querias? És a minha girafinha...e além disso gosto de te ver assim, assanhada...
- Está bem, safa-te agora...
- Mantém-te assim até logo à noite! Prometes?
- Vamos ver...vá, agora vai embora, não te atrases...
- Tudo bem, até logo!
- Até logo!
...
- Espera lá, Pedro...o que é isso aí no teu pescoço?
- O quê?
- Tens o pescoço todo negro atrás!

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