- Tenho uma notícia para te dar…
- Então?
- Ele acabou de morrer.
- Então estou perdido.
- Porquê?
- Como posso agora desculpar-me? Como posso aliviar o peso do arrependimento? Vou viver com esta mágoa para sempre.
- Qual mágoa? Do que estás a falar? Não fizeste nada!
- Precisamente. Entre tudo o que não fiz está o facto de não lhe ter dado ouvidos. Agora é tarde.


No nosso mundo, no nosso pretensioso mundo, como devemos distinguir a ilusão da realidade? Parece fácil. Como distinguir o bem do mal? Parece fácil. Como distinguir a verdade da mentira? Parece fácil. Na verdade, porém, todas estas questões não passam de uma falácia.

A história de uma criança pode contar-nos alguns aspectos importantes da sua vida; a história de um adulto, habitualmente, ou os confirma ou os desmente. Nem sempre o que fomos se revela a base do que somos. Eu sou um exemplo disso. A nossa infância não tem que nos condicionar. Se fomos vencidos, hoje podemos ser vencedores, e o contrário será igualmente verdade.
O que acontece então quando a criança se revela um enigma? Uma incógnita a todos os níveis?
Certamente haverá traços da sua personalidade que se revelam desde muito cedo, que nos permitem antever, mesmo que num mero esboço, o homem que pode vir a tornar-se.
Mas o que acontece quando a criança se revela diferente? Nem boa, nem má; Nem honesta, nem mentirosa; Nem virtuosa, nem falhada. Apenas diferente.

Chamava-se Stanislau porque o pai gostava do nome. Nunca disse a ninguém porquê. Contudo, secretamente, acreditava que o nome de alguém pode ajudar à definição da pessoa, à sua construção humana. Naquele caso, e a bem da verdade, não sei se teria razão, ou não, o seu progenitor. A mãe deu-lhe todo o carinho do mundo, pelo menos tanto quanto uma mãe extremosa pode dar. Todo o que existe.
A criança revelou-se precoce em quase tudo: começou a andar quando maior parte dos petizes nem gatinha. Começou a escrever quando a maior parte dos seus pares começava apenas a dizer as primeiras palavras. Era, de facto, uma criança de evolução assinalável, e deveras prematura em quase todas as proezas pueris, com excepção de uma: por mais que os pais criassem incentivos e tentassem ajudar, Stanislau não falava.
Tal facto, por muito estranho que fosse, poderia ser contornado com o facto de escrever desde muito cedo. Contudo, talvez por decisão do pequeno, a escrita não era utilizada para comunicar. Chegava a ser assustador, quando a meio da lida doméstica, de tal forma se formava um silêncio, que a criança era esquecida, até que a mãe de repente cruzava os seus olhos com os do miúdo e verificava que ele a observava com muita atenção. Parecia absorver, como uma esponja, tudo o que acontecia à sua volta.
O que mais aterrorizava os pais era a dificuldade que tinham em perceber as necessidades do pequeno Stanislau. Nunca chorou. Levaram-no a vários especialistas. Não havia nada de errado com ele. Cientificamente, tudo indicava que devia falar e produzir sons normalmente. No entanto, nunca ouviram um único som da sua boca. Nunca esboçou uma tentativa de comunicação, nem por gestos. A ideia que transparecia a todos era a de que se escusava a comunicar, com quem quer que fosse.
Os seus pais martirizavam-se pensando em formas de o levar a comunicar, a exprimir-se de alguma forma. Sem sucesso. Stanislau, foi ficando mais evidente com os anos, não pretendia comunicar. Bastava-lhe ouvir.

Os seus problemas começaram na escola, quando se tornou claro, para os outros miúdos, que ali estava alguém diferente. Invariavelmente, a diferença é tratada com uma dose importante de crueldade, e inicialmente sofreu alguma. Mas até nisso Stanislau não era igual aos demais. Curiosamente, as outras crianças acabaram respeitando o seu silêncio.
Com excepção da total ausência de participação nas aulas, ele era um bom aluno, dos melhores. A rapidez com que absorvia informação era invulgar e, na verdade, os professores achavam prodigioso o seu avanço nas matérias. Na maior parte delas quedava-se muito à frente dos seus pares. No entanto, podiam contar apenas com esses conhecimentos nas fichas de avaliação, única altura em que ele decidia responder ao que lhe era questionado. Recusava-se a ir ao quadro e passava todo o tempo de recreio sentado numa cadeira a ver os outros miúdos. Os outros miúdos olhavam para ele como se fosse o infame portador de uma deficiência. Não deixava de ser curioso este pensamento, dado que na raiz daquela palavra está uma outra, nos seus antípodas, a eficiência.

1 de olhos abertos:

  1. Miss I says:

    Hum, que começo diferente... gostei bastante do texto!

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