Quando Lara voltou a entrar no quarto de Stanislau vinha visivelmente transtornada. Não sabia o que pensar daquilo que tinha acabado de acontecer. Stanislau afinal talvez soubesse o que dizia. Mas a ideia de que Stanislau estivesse a dizer a verdade aterrorizava-a. Ultrapassava todos os limites ou padrões com os quais a sua vida tinha sido, todos estes anos, balizada ou condicionada. Por seu lado, Stanislau estava radiante. O seu sorriso brilhava, resplandecia no seu rosto todo o orgulho. Apesar de não querer mostrá-lo, Stanislau não conseguia esconder alguma vaidade pelo poder que encerrava em si. O poder que lhe tinha sido transmitido pelo planeta para levar a cabo a sua missão. O seu ar de gozo irritou Lara.

- Não percebo qual é a piada! Queres explicar-me o que aconteceu ali!?
- Querias uma prova. Dei-ta. Agora já podemos falar sem que saias daqui a correr? Posso contar contigo ou é melhor esquecermos tudo o que aconteceu hoje?
- Podes contar comigo, acho eu…
- É melhor teres a certeza!
- Ok, tenho a certeza. De qualquer forma arriscaste muito ao fazer essa tua demonstração. Podia sair daqui a correr para contar isto a alguém.
- Em primeiro lugar ninguém ia acreditar. E em segundo lugar, mesmo que alguém te desse ouvidos, eu apagaria da tua memória tudo o que aqui aconteceu.
- Podes fazer isso?
- Entre outras coisas. Agora, se não te importas, a tua histeria fez-nos perder algum tempo que gostava de recuperar.
O planeta está a morrer. É um ser vivo como todos nós e está a morrer. Eu sou a sua última hipótese de sobrevivência. Aquilo que vocês têm feito ao planeta tem levado ao seu gradual enfraquecimento. A exploração de petróleo é o que mais danos tem provocado.
- Pensei que era o aquecimento global?
- Está tudo ligado. Mas pensa no petróleo como pensas no teu sangue. O petróleo é o sangue do planeta, e nós, ano após ano temos retirado esse sangue das suas veias, sem parar, eliminando brutalmente os seus recursos e a sua capacidade para respirar e viver. Estamos a enfraquecer o ser em que vivemos, do qual somos habitantes, parasitas, se quiseres.
Isto tem que acabar.
- Mas se é o planeta que controla tudo porque não acaba com isto?
- Há uma variável que fugiu, há muitos anos, ao controlo do nosso planeta: o ser humano. Aquele que nos deu todas as nossas características e faculdades, agora está a definhar por causa delas. O ser humano tornou-se ganancioso. O planeta está cheio de recursos que podíamos utilizar para sobreviver. Não precisávamos de mais do que a terra nos dá. Temos tudo: água, alimento, recursos energéticos de todos os tipos. Mas para o ser humano isso não chegava. Tudo começou quando o primeiro se tentou apoderar de algo que não lhe pertencia. O Homem parte de um princípio de posse que nunca foi uma premissa da vida em conjunto. A partir do momento em que eu quero possuir algo, todos os meus vizinhos se vão sentir no direito de possuir algo ou a mesma coisa. Na verdade, pensámos que todos os seres humanos acabariam mortos nesta luta pelas coisas materiais, e na verdade, vão todos morrer por isso. Mas nunca pensámos que durassem tanto tempo. Na realidade, analisando a forma como se constituíram as diferentes sociedades, até se saíram bastante bem, mas de forma errada, completamente errada. Apenas uma pequena percentagem dos habitantes do planeta tem acesso aos recursos básicos de sobrevivência, porque alguém instituiu que é preciso pagar um preço elevado por esses recursos. Incrível, não é? Termos que pagar por uma coisa que é nossa de direito apenas por termos nascido: os recursos do planeta.

Lara continuava a digerir aquela informação. Tudo lhe parecia fazer sentido, credível, incrivelmente credível. Sentia uma amálgama de sentimentos contraditórios: por um lado a raiva de pensar que tudo poderia ter sido diferente no mundo, mas por outro, a conversa de Stanislau parecia repreendê-la também a ela, porque não podia deixar de se sentir culpada. Ela também vivia segundo estas regras reprováveis.

Stanislau continuava:

- Estás a pensar que tudo poderia ter sido tão diferente, que poderia ter sido tão melhor, não é?
- Sim. Não consigo evitar. Tento imaginar como viveríamos em paz e em total harmonia.
- Sim. Viveríamos num ambiente muito harmonioso.
- Mas há uma coisa que não percebo! Porquê só agora? Porque razão o planeta não tentou evitar isto antes? Não terá previsto que isto poderia acontecer? Seguramente que algo podia ter sido feito antes…
- Quem te disse que nada foi tentado?
- Então? O que é que se fez?
- Exactamente o que se está a fazer agora: enviou-se alguém.
- Mas quem? Porque é que nunca se falou nisso?
- Nunca se falou nisso? Há um conjunto de livros que conta essa história: chama-se Bíblia.
- O quê?! Não! Não posso sequer equacionar essa possibilidade!
- Não? Pensa bem. Os milagres, os princípios e os valores que defendeu, a forma como tentou mudar as pessoas, a defesa da liberdade e da harmonia entre os povos…
- Então, mas sendo assim, o que é que correu mal?
- A estratégia.
- A estratégia?!
- Sim, a estratégia. Na altura pensámos que seria importante tentar proteger integralmente a identidade do planeta tal como ele é. Eram tempos diferentes e subestimámos o ser humano. Pensámos que seria bom criar um clima de mistério e de temor pelo desconhecido, que assim o Homem arrepiaria caminho, que pensaria a sua existência de uma outra forma.
- O que achas que correu mal?
- Não é evidente? O Homem mais uma vez aproveitou o temor e a fraqueza dos seus pares para ganhar poder e separar o mundo. Com a semente que o meu irmão cá deixou criou-se uma religião, que deu nascimento a outras e criou mais barreiras com outras já existentes. O Homem criou a Igreja, essa aberração dos tempos, que serviu de mote a algumas atrocidades em nome da maior mentira de todos os tempos: Deus, ou Deuses.
Todas as religiões falham, todas as religiões escolheram, desde cedo, viver da fraqueza do ser humano, fazendo-o temer algo que desconheça inteiramente e que o faça viver de acordo com regras duvidosas. Servem apenas os interesses de alguns dos seus quadros superiores e são, na sua base, tão repugnantes como qualquer conceito moderno de capitalismo.
A estratégia falhou também no seu alcance e só por isso deixámos que passasse tanto tempo até fazermos algo novamente.
- Agora perdi-me, falhou no alcance?
- Sim, como sabes, apenas uma percentagem da população mundial venera Deus e Jesus Cristo. Se o catolicismo tivesse proliferado em todo o mundo, eu teria vindo mais cedo…
- Não percebo, então vocês só não permitem o…
- Deixa-me interromper-te já. Nós abominamos qualquer religião. Mas julgámos que estas diferenças entre a “fé” dos povos levariam a que se entendessem mais cedo ou mais tarde, quando percebessem que nada daquilo em que acreditavam era verdade, em nenhuma das religiões. Isso acabaria por criar uma crise de crenças que levaria a uma “formatação” do ser humano. Mas mais uma vez subestimámos a capacidade de adaptação do ser humano.
- Então e o que pensas fazer diferente?
- Eu não sou o meu irmão sabes.
- Chamas-lhe irmão?
- Na verdade apenas adapto a nossa relação a algo que percebas. Não passamos de entidades que se manifestam de formas físicas diferentes no planeta. Neste caso sou um de vós. Mas podia ser uma árvore, uma gota de água, um coral, um peixe, um cavalo, uma brisa que entra pela janela do teu quarto…
- E porque dizes que és como ele?
- Bom, o meu irmão é uma espécie de apaziguador, de gerador de consensos.
- Não sei se estou a perceber…
- Eu explico de outra maneira. O meu irmão representa o lado bom, condescendente e dócil do meu pai.
- E tu?
- Bom… eu não.


- A primeira coisa que tens que saber é que se não falei até recentemente foi por decisão minha…
- Isso eu já tinha percebido, não é preciso ser um génio…
- Calma, ainda não acabei. Não sei porquê mas já nasci assim. Nunca chorei, não tive que reprimir as emoções porque nunca soube o que eram emoções. Habituei-me a mim. Tento perceber todos os dias porque nasci assim e não descubro a resposta. É no mínimo curioso que encontre respostas para tudo na minha, menos para esta questão. Porque razão nasci assim?
- Isso atormenta-te?
- Sim. Mas deixa-me continuar. Como te disse habituei-me ao facto de não ter emoções. Sendo perfeitamente normal e não sentindo qualquer emoção ou sentimento, decidi que não devia falar pois não fazia sentido. Para quê falar? Para dizer o quê? Com que intenção ou objectivo?
Para quê expressar o vazio e o oco?
- E no entanto agora falas comigo…
-Precisamente. Desde sempre pensei que devia manter a minha posição até ao dia em que as premissas mudassem. Algo dentro de mim me dizia que um dia eu havia de sentir necessidade de falar. Confesso que pensei sempre que algo de extraordinário aconteceria na minha vida que me fizesse pensar: “é isto, é este o sinal para eu começar a falar”.
- Então e o que aconteceu?
- Tu aconteceste.
- Desculpa?
- Nunca tinha sentido emoções até ao dia em que te conheci. Nunca tinha sentido vontade de responder a ninguém como senti de te responder a ti quando me desafiaste. Embora eu entenda que não era a mim que desafiavas e sim a meus pais.
- Bom não sei o que dizer. E que emoções foram essas que te fiz sentir?
- Sei que agora ias adorar que te respondesse: amor. No entanto, não sei que emoções são estas. Não te posso ajudar a resolver as tuas dúvidas interiores. Sei que pretendes ver em mim a batalha final da tua luta interior. O tudo ou nada. O momento em que decidirás se as mulheres te completam mais do que os homens…mas não te posso ajudar.

Naquele momento a face de Lara deve ter espelhado completamente o seu embaraço e surpresa. Como é que ele podia saber? Ninguém podia ser tão perspicaz. Como é que ele percebeu? Teria ele ouvido alguma das suas conversas com Joana? Não podia ser, nunca tinha falado com Joana ao telefone perto dele.

- Como é que…
- Como sei que não sabes quem amar? Não interessa. Sei que os teus sentimentos são genuínos, mesmo por essa mulher onde te refugias. As tuas dúvidas também o são. Mas não é comigo que encontrarás as respostas que queres encontrar no homens…
- Porque dizes isso?
- Porque não sou um homem.
- O quê? Como assim, não és um homem?
- Não me obrigues a repetir tudo o que te digo, acho que fui claro. O que queres dizer é que não acreditas. Para te ajudar deixa-me dizer-te que não sou uma mulher.

Estava confusa. Lara não sabia o que pensar. Stanislau tinha razão, como sempre. Havia de facto uma tentativa velada da sua parte de procurar naquele rapaz as respostas que há dois anos sentia precisar. Não sabia o que pensar da informação que Stanislau lhe estava a dar até agora. Mas o que pensar dele? Não era um homem? O que podia ser então?

- Não sei o que pensar.
- Pensas demasiado. Sabes que desde muito cedo que aprendi a canalizar o meu pensamento para o que interessa. Não toldo o meu raciocínio com inutilidades. Não é verdade que sentes amor por essa tua amiga? Não é verdade?
- Acho que sim. Bom, ando confusa em relação a isso. Não sei se lhe posso chamar amor.
- O que entendes por amor então? Se eu te dizer que duas pessoas cantavam juntas toda a vida, cada um cantava uma parte da mesma canção. Um dia um deles faleceu e a partir desse dia, o outro, que lhe foi sempre fiel, passou a cantar apenas a parte da canção da pessoa que faleceu. Achas que sentiam amor um pelo outro?
- Acho que sim.
- Achas que é possível aos animais sentirem amor, por exemplo? Achas que dois animais se podem amar?
- Não. Os animais agem por instinto essencialmente. O amor como o conhecemos não existe entre os animais.
- Pois bem, eu digo-te agora que a história que te contei dos cantores da mesma canção, e onde tu afirmas ver amor, não aconteceu com duas pessoas, mas acontece todos os dias com uma espécie de ave na América do Sul. São pássaros, achas que podem sentir amor?
- Achava que não.
- O amor é demasiado sobrevalorizado. É confundido com muitos sentimentos. Não podes amar mais do que uma pessoa nesta vida? Ou vais dizer-me que há diferentes tipos de amor? Não há só um amor, mas aplicado a diferentes pessoas?
- Talvez. Não sei! Sei lá! Só me estás a confundir, mais nada.

Stanislau estava, com efeito, a confundi-la, propositadamente. Da mesma forma que se limpa um quadro para nele se escrever, assim fazia Stanislau coma sua interlocutora. Questionava as suas certezas e os seus valores para a deixar pronta para receber tudo o que lhe queria ensinar.

- Sabes, Lara, as pessoas são um animal estranho, talvez o mais estranho. Diferentes pessoas, perante a mesma situação, agem de formas tão díspares que é praticamente impossível estabelecer padrões. Mas há um padrão comum a todas as pessoas do mundo: são como icebergs. Podemos ver o topo, mas nunca conseguimos ver tudo. Todas as pessoas vivem dessa forma, com segredos e características que nem elas próprias sabem que têm. Vivem os seus dias tentando projectar aquilo que querem que os outros vejam. Habitualmente projectam a imagem que têm de si próprias, misturada com a imagem que gostavam de transmitir aos outros. Naturalmente, nenhuma das duas é a verdadeira imagem de nós. Somos mentirosos todos os dias da nossa vida. Olhamos todos para a ponta do iceberg uns dos outros sem ver o que está na base, escondido, e que é talvez o que em nós tem mais peso, o mais importante daquilo que somos.
- Desculpa mas acho que não escondo assim tanto dos outros!
- E de ti? Sabes quantas coisas escondes de ti própria? Quando te disse que não sou um homem não fui inteiramente verdadeiro. Em bom rigor sou um homem, mas não um homem comum.
- Não estou a perceber…
- O nosso planeta é um ser vivo, sabias disso?
- Toda a gente sabe disso.
- Acho que não estás a perceber. O nosso planeta é um ser vivo, autónomo, independente, que toma decisões e faz escolhas como todos nós…
- Isso é um bocado rebuscado, Stanislau, mesmo vindo de ti.
- Pois garanto-te que é verdade. O nosso planeta vive como qualquer um de nós. Chama-lhe a mãe natureza se quiseres. Chama-lhe Deus, Alá, Buda, chama-lhe o que quiseres. Ficas hoje a saber, porque to garanto eu, que o planeta onde vives faz uma apreciação de todas as tuas escolhas e interfere com elas. Não decide a tua vida, mas cria toda e qualquer consequência para as tuas escolhas e decisões.
- Desculpa-me mas isso é um dos maiores absurdos que já ouvi.
- Pode até ser, mas vou-te provar que digo a verdade.
- Como?
- Tudo a seu tempo. Vais ter que confiar em mim. Mas isto leva-me ao meu plano…
- Ah, sim, conta-me lá então.

Nesta fase Lara já se perguntava se Stanislau não seria um pouco louco. Na verdade, sentia que algo nele a fazia sentir segura e que podia confiar nele, mas por outro lado, toda aquela história a levava a pensar que talvez se tivesse precipitado no julgamento do rapaz. Será que ele não tinha criado este mundo e decidido viver nele? Será que tudo isto não seria fruto da imaginação que todos achavam que ele não tinha? Lara começava a sentir-se mais insegura em relação a Stanislau, mas estava disposta a saber mais, estava disposta a participar neste jogo durante mais algum tempo.

- Eu sou filho do planeta, e não dos meus pais. O planeta enviou-me para mudar o curso da humanidade.

Lara não conseguiu conter uma gargalhada. Era demasiado ridículo. Stanislau era filho de um planeta que vivia como todos nós e que interferia nas vidas de todos os seus habitantes, de uma forma estranha. Acima de tudo, parecia-lhe ridículo que aquele rapaz à sua frente tivesse sido enviado para mudar o curso de toda a humanidade.

- Ousas rir do que te digo? Digo-te finalmente a verdade e a tu reages ridicularizando o que digo?
- O que esperavas? Isso que dizes não faz qualquer sentido! Não és filho dos teus pais? Filho do planeta? Achas que foste enviado para mudar a humanidade? Deixa que te diga, Stanislau, os hospitais psiquiátricos estão repletos de gente que diz o mesmo. Desculpa mas não estou para isto! Vou sair e vou ligar ao meu pai para me vir buscar.
- Porquê? Precisas de provas é? É isso?
- Duvido que mas possas dar.
- Posso, mas não quero! Não tens o direito de me exigir provas. Dei-te o privilégio de fazeres parte disto mas talvez não o mereças. Talvez me tenha precipitado. Podes sair.
- Posso sair?! Eu é que quero sair!! Adeus.

Quando Lara saiu e bateu com a porta Stanislau ficou no quarto, sozinho, a lidar com a complexidade nova que o assolava. Nunca se tinha sentido assim, exaltado, nervoso, sem saber o que pensar. Lara provocara-lhe uma reacção completamente diferente de tudo o que já tinha sentido na vida. Só podia ser ela. Mas se era ela o sinal, porque diabo ela não acreditava? Porque raio o tinha ridicularizado? Tentou colocar-se no lugar dela. Espreitou pela janela e lá estava ela, já no jardim, ao telefone. Provavelmente o pai não tinha atendido porque baixou agressivamente o braço que segurava o telemóvel e começou a olhar em volta batendo o pé de forma nervosa. Continuava linda, mesmo assim chateada não perdia aquela altivez, quase realeza, que a tornava tão diferente, tão especial.

Stanislau pensou que era normal ela não acreditar, no lugar dela pensaria da mesma forma. Foi tão ingénuo na forma como lidou com ela. O ascendente sobre ela não era tão forte assim. Substimou-a. Agora, não a podia deixar ir embora, ou podia perdê-la para sempre. Só havia uma coisa a fazer: tinha que lhe dar provas do que dizia.

Lara aguardava que o pai lhe devolvesse a chamada e já estava a ficar impaciente. Era sempre tão complicado falar com pai. Por vezes demorava horas até lhe devolver uma chamada sua, mas devolvia sempre. Sorriu. Não valia a pena preocupar-se. Nesse momento começou a sentir uma sensação estranha nos pés. Sentiu que o vento agitava as folhas do jardim à sua volta. Algumas folhas erguiam-se à sua frente e sentia que algumas lhe tocavam nas costas. Pensou que devia estar a ser apanhada no meio de um pequeno remoinho. Olhou novamente para o chão e ficou completamente estarrecida. Os seus pés não estavam no solo. Debaixo de si um tapete de folhas pairava a cerca de um palmo do chão e várias folhas voavam, como borboletas, à sua volta. De repente, o tapete de folhas rodou e ela, em cima dele, rodou também, lentamente, até ficar de frente para a casa. Depois, sentiu-se descer suavemente, até que tudo acabou, as folhas caíram no chão e o tapete debaixo dos seus pés voltou a ser apenas uma amálgama de folhas espalhadas pelo jardim. Levantou a cabeça e viu Stanislau à janela, sorrindo, com ar de desafio.
O seu telemóvel tocou.

- Não pai, liguei para ti sem querer.

- Não, não preciso de nada. Quando quiser que me venhas buscar ligo, pode ser?

- Até logo.


Pese embora, nesta fase, todos atribuírem a ausência de comunicação a uma decisão do próprio Stanislau, não sabiam, porém, que Stanislau nasceu com uma incontrolável falta de vontade de comunicar. Por muito que a partir de determinada altura ele tivesse decidido manter o seu impenetrável escudo de silêncio, a verdade é que tinha nascido assim. Nesta fase, era impossível ainda, mesmo para ele, explicar porque nasceu assim. Essa era, talvez, a única dúvida que tinha acerca da sua existência. Tudo o resto, acerca de si próprio e da sua vida, era bastante claro para si. Sabia perfeitamente para onde queria ir e como queria lá chegar. Aos 16 anos era uma pessoa decidida e tinha todo o seu futuro planeado. Todo.

A 2ª vez que Lara voltou foi numa tarde de sábado. O sol estava tímido e teimava em esconder-se. Stanislau espreitou Lara pela janela enquanto chegava e saía do carro. O pai fez questão de a trazer pessoalmente. A luz terna da tarde e a leve brisa que se fazia sentir conferiam à figura de Lara uma aura de magia, de assombramento. A sua figura esguia impunha-se no jardim. As folhas que se moviam, rasteiras, a seus pés pareciam formar uma passadeira estendida para si, como se a natureza soubesse que ali caminhava uma princesa. Stanislau achou-a lindíssima. Teria fotografado aquele momento se pudesse. Mas ficaria gravado na sua memória fotográfica para a eternidade, estava certo disso.

- Tiveste saudades minhas?
- O teu pai colocou-te muitos obstáculos?
- Boa tarde para ti também!
- Calculo que não. Queres sentar-te?
- Para quem me queria por perto estás um bocado antipático.
- Antipático porquê? Porque não gasto palavras com cumprimentos inconsequentes?
- Sim, basicamente por isso.
- Tudo o que dizemos deve produzir uma consequência. Deve ser dito com essa intenção. Não me parece que desejar-te uma boa tarde possa tornar a tua tarde melhor, ou a minha…
- Ok. Já percebi. Então para que me queres aqui? Não estou para passar a tarde toda calada…
- Por dois motivos: porque te acho interessante e gosto de ti e, mais importante, porque quero que testemunhes o meu plano.
- E que plano é esse?
- O plano da minha vida.
- Não estou a perceber.
- A minha vida é mais importante do que pensas.
- Mas como? Importante do género em que Deus tem planos para ti?
- Não. Importante do género em que eu tenho planos para todos. Deus não existe.
- Pareces muito seguro disso.
- Porque achas que existe?
- Quem te disse que eu acho isso? Posso não acreditar em Deus!
- Porque rezarias a alguém em quem não acreditas?
- Como sabes se rezo?
- Simplesmente sei.
- Começas a assustar-me…
- Está na hora de te dizer a verdade.
-Acerca de quê?
- Acerca de mim.
- Sou toda ouvidos.

Lara sentia-se orgulhosa naquele momento. Stanislau estava disposto a contar-lhe tudo. Não conseguia explicar porque se sentia assim perto dele. Sentia-se assustada, mas simultaneamente sentia uma estranha segurança. A sua vida, até agora enfadonha ganhava com aquele rapaz uma cor, uma magia, que julgava ser impossível encontrar em algum rapaz.
Lara havia conhecido Stanislau na fase mais confusa da sua vida. Os seus pais não sabiam mas ela travava diariamente uma luta interior consigo própria. Lara tentava perceber, aos 20 anos, se gostava de rapazes, ou se, como se vinha a aperceber nos últimos 2 anos, preferia raparigas. Todas as suas dúvidas começaram quando, numa noite em que tinha ficado a dormir em casa da sua melhor amiga, Joana a beijou. Estavam deitadas na cama de Joana a ver uma comédia hilariante. Lara ria-se e contorcia-se na cama e Joana começou a fazer-lhe cócegas. Uma coisa levou à outra e começou a luta de almofadas. Já cansadas, deixaram-se cair nos braços uma da outra. Os rostos já próximos um do outro perderam o riso. Ficaram as duas mais sérias, olhavam-se nos olhos com uma cumplicidade desarmante. Lara sentiu-se bem, confiante, segura. Joana fazia-a sentir assim. Joana passou a mão pelo seu cabelo, beijou-lhe a testa, depois a bochecha, depois o nariz. Quando desceu para a boca e Lara sentiu a sua respiração quente, não resistiu, fechou os olhos e deixou que Joana a beijasse. A sensação dos lábios de Joana nos seus foi extraordinária. Nunca tinha sentido nada assim. Nunca tinha beijado uns lábios tão suaves, nem acariciado uma pele tão macia.
Depois dessa noite, seria de esperar que a sua relação com Joana sofresse algumas mudanças. Tal não aconteceu. Continuavam hoje as melhores amigas e o beijo de há dois anos tinha evoluído para algumas noites de prazer que já tinham proporcionado uma à outra. Sentiram o seu primeiro orgasmo juntas. Lara sentia, a cada dia que passava, uma menor necessidade de estar com rapazes. Não lhe agradava a estupidez hormonal dos rapazes, sempre a competirem uns com os outros com apenas um propósito: conquistarem raparigas. Não perdiam uma oportunidade de tentarem qualquer coisa, fosse no cinema, no carro, em casa, na escola, não pensavam noutra coisa. Estava farta deles. O entendimento que tinha com Joana era único, lindo, harmonioso, algo que um rapaz jamais lhe poderia proporcionar.
Contudo, Stanislau era diferente, e agora ia contar-lhe tudo.


O quarto de Stanislau era surpreendente. Não se parecia com um quarto de um adolescente. As paredes não tinham posters, estava muito arrumado, não se via nada fora do devido lugar. Na verdade, não havia ali nada que ligasse Stanislau a qualquer coisa, ou pessoa, ou actividade. O quarto surpreendia pela ausência de vida.
- Ena, Stanislau, o teu quarto é, bom, é muito arrumado!
Stanislau estava de pé e olhava Lara com o mesmo interesse que tinha demonstrado durante o jantar. Lara não sabia, mas para ele aquela mulher era a mais interessante que já tinha visto em toda a sua vida. Não era muito bonita, mas era elegante e enigmática. De qualquer forma, a beleza era algo que não interessava a Stanislau. O seu interesse pelas pessoas não poderia, nunca, resumir-se a algo tão fútil.
- Se não quiseres falar eu compreendo. Não precisas de falar. Mas ambos sabemos que se não o fazes é porque não queres.
Ele continuava a olhá-la com imenso interesse e isso estava a deixá-la desconfortável.
- Estavas à espera que subisse não estavas? Estavas à minha espera. O que é que te fez pensar que subiria?
Ele conseguia continuar impávido, sem esboçar qualquer expressão.
- Tudo bem. Não contava que falasses comigo quando subi. Vou-me sentar aqui na cama e podemos ficar em silêncio.
- Quando te sentes nervosa coças-te sempre atrás da orelha direita…
- O quê? Então sempre falas comigo? – Lara estava espantada. Na verdade não acreditou que ele quebraria o silêncio por ela.
- E quando ficas irritada franzes a sobrancelha direita e levantas a esquerda…
- Sim, muito interessante. Não falas durante 16 anos e é isso que te apetece dizer agora?
- Gostas de animais, especialmente selvagens e eu acredito que é por serem livres, tens uma relação silenciosa mas de grande entendimento e respeito com o teu pai, o que me faz pensar que admiras as suas virtudes, mas que ele não foi um pai muito presente. Com a tua mãe a relação é de ódio, mal olhas para ela e deixas escapar um esgar de desdém de cada vez que ela opina. Deduzo que seja pelo facto de saberes que ela trai o teu pai…há muito tempo…
- Ok, estou impressionada. Como sabes que a minha mãe trai o meu pai?
- Da mesma maneira que sei que não tens namorado, que me achas interessante, que achas que os meus pais são uns idiotas e que não querias vir a este jantar até o teu pai te falar de mim. Observando.
- Observando?
- Sim. O silêncio permite-nos observar e as pessoas habituam-se a agir com uma naturalidade invulgar. O facto de contarem sempre com a minha quase inexistência ou invisibilidade leva a que se sintam como se estivessem sós. Apenas sós agimos com total desprendimento e somos verdadeiramente genuínos. O meu silêncio tornou-me invisível.
- Porque falas comigo então?
- Porque quero que voltes. Interessas-me.
- E se não voltar?
- Problema teu. Continuo a viver. Tenho um plano para mim e vou manter-me fiel a ele.
- E que plano é esse?
- Como te disse, o plano é para mim, não faz sentido divulgar-to.
- Vais continuar sem falar?
- Vou. Para além disso conto com a tua discrição, não podes dizer a ninguém que tivemos esta conversa. Nem mesmo ao teu pai. Quando desceres o teu pai não te vai perguntar nada mas o meu vai. A minha mãe vai ficar furiosa contigo se descobrir que falei contigo e não com ela. Vais dizer que permaneci em silêncio o tempo todo e que quase nem dei pela tua presença. O teu pai vai perguntar-te o que aconteceu no caminho para casa. Vais repetir o que te disse. E vais pedir-lhe para voltar cá. O teu pai depois vai ligar ao meu a pedir para tu passares por cá e o meu pai vai aceitar com alguma relutância. Afinal será o Dr. Mendes a pedir.
- A minha vinda cá a casa faz parte do teu plano?
- Não. A tua vinda cá prende-se apenas com a minha vontade de te ter por perto. Agora vai, tenho muito em que pensar.
Lara acedeu ao seu pedido, que era quase uma ordem. Não era mulher de deixar que falassem assim com ela mas parecia-lhe genuíno o discurso de Stanislau. Claramente ele era muito seguro de si próprio e tinha um plano. O facto de estar na presença de alguém, que parecia conhecê-la melhor do que muitos dos seus amigos e que dizia ter um plano, puxava o seu interesse para níveis anormais. Ela queria voltar. Não sabia porquê, mas queria. Sentia-se importante pelo facto de ele a querer por perto e quando chegou à sala não foi com espanto que percebeu que tudo ia acontecer como Stanislau previra. No caminho para casa o seu pai perguntou-lhe o que acontecera. Depois de repetir tudo o que dissera, pediu ao pai para voltar. Depois de alguma relutância, o Dr. Mendes acedeu em ligar ao pai dele. Nesse momento, no seu quarto, Stanislau sorriu.


Stanislau falou!
- Falarei quando estiver preparado.
Todos pararam a discussão imediatamente e fixaram o olhar, atónitos, no rapaz. Estavam à espera que continuasse a falar mas tal não aconteceu. Stanislau voltou, como por magia, à letargia habitual. Parecia que um interruptor se tinha ligado e desligado num espaço de segundos.
- Mas tu consegues falar filho?! - perguntou a Mãe, sem querer acreditar. Como era possível, uma pessoa que não falou durante 16 anos, que nunca chorou, que nunca se expressou de forma alguma, de repente soltar uma frase com aquela naturalidade, uma frase bem construída, bem pronunciada? Como? Voltou à carga.
- Stanislau, meu filho, tens que falar connosco! Se és capaz tens que falar! Não estás a ser justo com a mãe e o pai!
Nada. Stanislau permanecia igual a si próprio. A mesma expressão permanecia na sua face. Os pais fitavam-no aguardando alguma reacção, alguma palavra, qualquer coisa.
Lara interrompeu novamente:
- Acho que estão tão preocupados com o facto de ele falar que acabaram por esquecer o mais importante…
- E o que é isso génio? – O Dr. Mendes já a ferver.
- Ele disse que falará quando estiver preparado. Uma vez que esteve sem falar até hoje e que agora já todos sabemos que o fez por sua iniciativa, talvez seja de todo o interesse respeitar a sua vontade. Se não está preparado agora, significa que há-de estar, um dia. Seria algo egoísta da nossa parte não aguardarmos pacientemente.
- Egoísta?! - A mãe de Stanislau estava visivelmente transtornada - Egoísta?! E não é egoísta deixar-nos nesta angústia?! Se consegue falar porque não fala?!
- Não sabemos porque não está preparado. Pode ser algo importante. Acho que devemos respeitar, é só isso. Bom, é a minha opinião, não quero estar a dizer-vos o que fazer.
Stanislau virou-se para Lara no preciso momento em que ela acabou de falar, e os seus olhos não mais a largaram. Lara sentiu-se intimidada no início, com o olhar intenso de Stanislau, mas depois começou, de certa forma, a apreciar essa atenção quase lisonjeira.
O jantar continuou, mas com um ambiente bem mais pesado. Não se falou mais de Stanislau e Stanislau não falou mais. A Lara fazia-lhe confusão a atitude dos pais de Stanislau. Depois de 16 anos sem falar, o seu filho dizia uma frase, algo importante e eles, inversamente à alegria que deviam sentir por isso, por perceber finalmente que ele pode não ter um problema tão sério como imaginaram, sentem-se furiosos, revoltados, porque entendem que ele os ignorou durante todo aquele tempo por iniciativa própria. Não deviam ficar felizes? Lara não parava de pensar nisso.
Stanislau levantou-se no final do jantar e foi para o seu quarto, algo que não era muito habitual mas que também não era, de todo, estranho. Se os seus pais tivessem mais atentos a pequenos detalhes iam perceber que Stanislau só permanecia junto das pessoas em determinadas alturas, e que os dias em que escolhia recolher-se para o quarto, não eram escolhidos ao acaso. Mas não estavam.
- Se não se importam eu vou subir com o Stanislau, para lhe fazer um pouco de companhia! – Lara estava a arriscar demasiado com os pais do rapaz, que não fizeram muito boa cara a esta proposta.
Mas o Dr. Mendes, desta vez, defendeu a filha.
- Não me levem a mal, mas a verdade é que o Stanislau falou pela primeira vez hoje, quando a Lara insistiu com ele e o questionou sobre quando é que ia falar finalmente. O que o Stanislau disse foi claramente uma resposta ao que a Lara perguntou. Acho que talvez fosse bom para ele estar um pouco com ela. Talvez ajudasse. Conheço a minha filha e sei que não fará nada que o possa prejudicar.
Lara sorriu para o pai. Ele era, de facto, um homem justo e inteligente. Para além disso, também conseguia ser bastante persuasivo e, com efeito, obteve permissão para que Lara subisse. Ela assim fez e percebeu, imediatamente, que o seu pai não era o único homem inteligente naquela casa. Stanislau já a esperava à porta do quarto. Sabia que ela não resistiria a subir com ele. Ela assustou-se perante essa capacidade de antevisão quase desarmante. Ela prosseguiu na sua direcção, mas já tinha percebido que o ascendente que achava ter sobre Stanislau estava a desaparecer dentro de si naquele instante. Percebeu, antes de entrar, que Stanislau, quase sem falar, tinha manipulado todos durante o jantar, para que tudo acontecesse assim.


A evolução de Stanislau era, a todos os níveis, notável. No entanto, nas várias reuniões para as quais os seus pais eram chamados, o discurso dos professores era muito semelhante: assimilava informação como ninguém, dispunha a informação, nos testes, de forma perfeita. Mas não comunicava, nem tão pouco esboçava qualquer tipo de criatividade. Tudo o que exigisse uma iniciativa da sua parte era imediatamente dispensado. Simplesmente não o fazia.
A preocupação dos seus pais aumentava a cada ano que passava. Nenhum médico explicava o seu comportamento. Tentaram tudo, medicinas alternativas e tradicionais. O pobre Stanislau nem a uma “ida à bruxa” escapou. Nada.
Conseguia assistir a um espectáculo de circo inteiro sem esboçar um sorriso. Mantinha apenas os seus olhitos brilhantes apontados, como faróis, para o núcleo dos acontecimentos, mantinha os ouvidos em alerta, não se distraía com nada. Ao contrário do que seria de esperar, Stanislau via pouca televisão, facto que ainda trouxe mais confusão a todos quantos tentaram perceber o que se passava na mente do pequeno. Antes preferia ficar horas a fio a observar as pessoas, a ouvi-las, quieto.

Fisicamente, estava a transformar-se num belo rapaz. O seu cabelo muito escuro, ondulado, constituía uma moldura sombria e romântica do seu rosto pálido, mas perfeito. Os seus olhos pareciam dois berlindes, negros, com um brilho muito intenso. Estava a ficar alto, estranhamente alto, tendo em conta a altura dos pais. Não fosse o seu comportamento estranho e teria sido um sucesso entre as suas colegas de escola. Mas o seu ar taciturno e a total ausência de comunicação faziam com que fosse, de certa forma, inatingível.

Em casa, já prevalecia uma certa habituação ao seu comportamento. Era normal ver os pais sentados no sofá, assistindo a um qualquer programa na televisão, enquanto Stanislau, sentado num cadeirão, virado para eles, os observava atentamente.
Várias vezes, em festas ou reuniões familiares, tudo acontecia com Stanislau esquecido, num canto da sala, enquanto todos continuavam com as suas vidas, como se ele simplesmente não existisse. Incialmente, os pais, talvez por vergonha ou embaraço, tentavam evitar a ida de estranhos a casa, com receio da reacção das pessoas à diferença do seu filho. No entanto, agora, aos 16 anos, Stanislau via muitas vezes estranhos lá em casa, o que significava que os seus pais já se haviam habituado à ideia e já respondiam com naturalidade às perguntas incómodas dos amigos e conhecidos.

Um dia, os pais deram um jantar lá em casa, para receberem um casal amigo e a sua filha. O Dr. Mendes era médico de clínica geral e foi com alguma curiosidade que ouviu os pais contarem todo o percurso silencioso de Stanislau até aquele dia. Stanislau observava toda a cena olhando, ora para os convidados, ora para os pais, em profundo silêncio, enquanto jantava, com a mesma calma do costume. O Dr. Mendes dizia que era fascinante o caso de Stanislau, porque, na sua opinião, prendia-se apenas com uma decisão tomada pelo próprio desde muito cedo: a de não comunicar. Os pais contrapunham que não era possível, que tinha que ser um problema neurológico, porque um bebé com dias de vida não conseguia tomar a decisão de não chorar, de não se expressar de forma alguma. O Dr. Mendes concordava que era difícil mas que não podiam excluir essa hipótese, tendo em conta a forma prematura com que Stanislau se tinha notabilizado em algumas matérias na escola. Predispunha-se a levar Stanislau a um especialista seu amigo, um psicólogo. Achava que o que o garoto precisava era de um estímulo. Devia ser estimulado na altura certa e nos pontos de interesse certos.
A discussão foi interrompida por Lara. A filha do Dr. Mendes resmungou: “Eu cá acho que não devíamos estar a falar do Stanislau como se não estivesse connosco à mesa! Acho errado!”
Lara tinha 20 anos, era uma rapariga lindíssima. Tinha o cabelo curto, um corte quase masculino. Tinha uns olhos verdes, de um verde azeitona, que pareciam naturalmente maquilhados, ainda que ela não o fizesse. Era esguia, de uma elegância extraordinária, quase faraónica. Andava como se os seus pés não tocassem o chão. Naquele momento soltou aquela afirmação porque se cansou da conversa. O rapaz estava ali sentado com eles e era como se ninguém quisesse saber. Para além disso, achou Stanislau adorável.
No momento em que disse aquilo olhou Stanislau e estremeceu quando percebeu que ela a olhava fixamente, imperturbável.
Ela ganhou coragem e continuou: “Não percebo porquê tanta preocupação com o facto de ele não falar! Talvez esteja a aguardar um dia em que se sinta à vontade para o fazer!” e não parava, talvez saturada de tudo que esteve a ouvir até aquele momento: “ O que achas Stanislau? Quando é que vais finalmente falar? Já sabes?”
O Dr. Mendes exaltou-se:”Lara, estás a ser inconveniente! O que te deu?”
Então, aconteceu algo de profundamente extraordinário.


- Tenho uma notícia para te dar…
- Então?
- Ele acabou de morrer.
- Então estou perdido.
- Porquê?
- Como posso agora desculpar-me? Como posso aliviar o peso do arrependimento? Vou viver com esta mágoa para sempre.
- Qual mágoa? Do que estás a falar? Não fizeste nada!
- Precisamente. Entre tudo o que não fiz está o facto de não lhe ter dado ouvidos. Agora é tarde.


No nosso mundo, no nosso pretensioso mundo, como devemos distinguir a ilusão da realidade? Parece fácil. Como distinguir o bem do mal? Parece fácil. Como distinguir a verdade da mentira? Parece fácil. Na verdade, porém, todas estas questões não passam de uma falácia.

A história de uma criança pode contar-nos alguns aspectos importantes da sua vida; a história de um adulto, habitualmente, ou os confirma ou os desmente. Nem sempre o que fomos se revela a base do que somos. Eu sou um exemplo disso. A nossa infância não tem que nos condicionar. Se fomos vencidos, hoje podemos ser vencedores, e o contrário será igualmente verdade.
O que acontece então quando a criança se revela um enigma? Uma incógnita a todos os níveis?
Certamente haverá traços da sua personalidade que se revelam desde muito cedo, que nos permitem antever, mesmo que num mero esboço, o homem que pode vir a tornar-se.
Mas o que acontece quando a criança se revela diferente? Nem boa, nem má; Nem honesta, nem mentirosa; Nem virtuosa, nem falhada. Apenas diferente.

Chamava-se Stanislau porque o pai gostava do nome. Nunca disse a ninguém porquê. Contudo, secretamente, acreditava que o nome de alguém pode ajudar à definição da pessoa, à sua construção humana. Naquele caso, e a bem da verdade, não sei se teria razão, ou não, o seu progenitor. A mãe deu-lhe todo o carinho do mundo, pelo menos tanto quanto uma mãe extremosa pode dar. Todo o que existe.
A criança revelou-se precoce em quase tudo: começou a andar quando maior parte dos petizes nem gatinha. Começou a escrever quando a maior parte dos seus pares começava apenas a dizer as primeiras palavras. Era, de facto, uma criança de evolução assinalável, e deveras prematura em quase todas as proezas pueris, com excepção de uma: por mais que os pais criassem incentivos e tentassem ajudar, Stanislau não falava.
Tal facto, por muito estranho que fosse, poderia ser contornado com o facto de escrever desde muito cedo. Contudo, talvez por decisão do pequeno, a escrita não era utilizada para comunicar. Chegava a ser assustador, quando a meio da lida doméstica, de tal forma se formava um silêncio, que a criança era esquecida, até que a mãe de repente cruzava os seus olhos com os do miúdo e verificava que ele a observava com muita atenção. Parecia absorver, como uma esponja, tudo o que acontecia à sua volta.
O que mais aterrorizava os pais era a dificuldade que tinham em perceber as necessidades do pequeno Stanislau. Nunca chorou. Levaram-no a vários especialistas. Não havia nada de errado com ele. Cientificamente, tudo indicava que devia falar e produzir sons normalmente. No entanto, nunca ouviram um único som da sua boca. Nunca esboçou uma tentativa de comunicação, nem por gestos. A ideia que transparecia a todos era a de que se escusava a comunicar, com quem quer que fosse.
Os seus pais martirizavam-se pensando em formas de o levar a comunicar, a exprimir-se de alguma forma. Sem sucesso. Stanislau, foi ficando mais evidente com os anos, não pretendia comunicar. Bastava-lhe ouvir.

Os seus problemas começaram na escola, quando se tornou claro, para os outros miúdos, que ali estava alguém diferente. Invariavelmente, a diferença é tratada com uma dose importante de crueldade, e inicialmente sofreu alguma. Mas até nisso Stanislau não era igual aos demais. Curiosamente, as outras crianças acabaram respeitando o seu silêncio.
Com excepção da total ausência de participação nas aulas, ele era um bom aluno, dos melhores. A rapidez com que absorvia informação era invulgar e, na verdade, os professores achavam prodigioso o seu avanço nas matérias. Na maior parte delas quedava-se muito à frente dos seus pares. No entanto, podiam contar apenas com esses conhecimentos nas fichas de avaliação, única altura em que ele decidia responder ao que lhe era questionado. Recusava-se a ir ao quadro e passava todo o tempo de recreio sentado numa cadeira a ver os outros miúdos. Os outros miúdos olhavam para ele como se fosse o infame portador de uma deficiência. Não deixava de ser curioso este pensamento, dado que na raiz daquela palavra está uma outra, nos seus antípodas, a eficiência.


- Acalma-te Chico, aquela mulher não te vai fazer mal…
- Juro-te que é ela Paulo, não estou enganado! Ela vai matar-me…
- Chico, calma, aquela é a minha mulher, a Gabriela!

- Paulo, eu sei que estás muito contente por teres encontrado a Gabriela, mas temos que sair daqui depressa…
- Por amor de Deus, Joana, não te estou a perceber…
-Não?! Estás burro!? Como é que ela nos encontrou? Por acaso disseste para onde vínhamos?


-Paulo, se ela está aqui é pelo Chico, não é por mais nada, não percebes? Ele tem razão…deve ser ela!
- Não posso acreditar numa coisa dessas…como é que…
- Não sei Paulo, mas agora vamos embora…pensas nisso mais tarde, vamos! Chico?

- Chico! Olha, Paulo, ele está ali à beira do cais! Chico!!!



- Chico, o que estás a fazer, vem connosco, temos que fugir…
- Paulo, não consigo, é ela que me está a fazer isto, estou a sentir algo a puxar-me para a água…ajuda-me!
- Agarra a minha mão!

- Porra, estás gelado! E estás a gelar-me também…
- Larga-me, Paulo, não há nada a fazer…eu mereço!
- Chico! Chicooo!


- Deixa-o, é inteiramente merecido, não achas?
- Gabriela!
- Essa tua tentativa ridícula de o salvar enoja-me.
- Como foste capaz, Gabriela?
- Como fui capaz? E não te perguntas como foram aqueles animais capazes?!
- Eu sei o que eles te fizeram, foi horrível, mas porque nunca me contaste, eu podia ajudar-te!
-E ajudaste, Paulo, ajudaste a que o meu plano resultasse. Afinal de contas trouxeste o Pedro até mim…
- Mas como foi possível ele não te reconhecer?
- Quem te disse que não me reconheceu?
- Não pode ser…
- Desculpou-se logo que me apanhou sozinha a primeira vez! Já que aqui estás Joana, queres que te conte o que ele me disse? Foi qualquer coisa como: “Gabriela, espero que me possas desculpar, éramos miúdos, e sabes como são os miúdos, por vezes têm brincadeiras estranhas…mas está tudo bem entre nós certo?”
- Não acredito nisso…
- Acredita no que quiseres. Por mim podes morrer também…


-Gabriela, pára! O que estás a fazer? Deixa a Joana em paz, ela não faz nada, o que estás a fazer? Pára! Joana, foge! Foge daqui!




- Gabriela, como pudeste matar a Joana?! Que mal é que ela te fez? Tu não estás em ti!Que poder é esse que tens? É o Rio não é? Também te banhaste no rio não foi!?
- Tive que me lavar sabes. Não é muito agradável ser violada com um pau enorme e ser enterrada logo de seguida. Pensei que morria ali! Fazes ideia do que é passar por isso? FAZES?!
- Obviamente que não…não sei o que dizer…deve ter sido horrível.
- Foi muito mais do que isso! Eu morri naquele dia e no mesmo dia renasci. Eu sou a face do terror que vivi. Transformei esse terror, primeiro em raiva, depois em fúria e depois em audácia e desejo de vingança. Eu não os podia deixar ficar impunes percebes?
- Mas a Joana…que mal te fez?
- O que achas que ela ia fazer com toda esta informação? Eu não estaria segura. Achas justo que eu pague por isto? Achas?
- Não. Não acho, mas eu sou suspeito…
- Porquê?
- Porque te amo. Anda cá, abraça-me!
- Estás a falar a sério? Achas que ainda podemos ser felizes os dois?
- Felizes? Não sei. Mas não há felicidade no mundo que eu troque pela eternidade ao teu lado.
- Achas que algum dia me vais perdoar?
- Só se me prometeres também o teu perdão…
- Eu? Perdoar-te? Porquê?
- Por isto…





- Desculpa, Gabriela, mas tinha que ser. Não podes viver, percebes? É O Rio sabes?! Eh! Eh! Eh!. Não são esses os seus planos para nós.
- Mas p…po..porquê? Paulo…
- Shhhh! Deixa que a morte venha, não resistas.
- Mas…mas…tu…nunca foste ao Rio, não percebo…
- Não preciso, Gabriela, eu sou O Rio! Eu controlo tudo o que lá acontece! Agora, se não te importas, morre, por favor.


- Estávamos por ali todos a brincar, quando olhámos para a água no rio e vimos uma coisa estranha…
- Que coisa?
- A água do rio mudou ligeiramente de cor e começou a ondular, mas apenas numa zona muito específica, parecia formar um círculo perfeito! Muitos dos miúdos fugiram com medo. Mas não fomos todos embora. Lá permanecemos eu, o Tiago, o Pedro e uma miúda que até hoje não sei como é que se chamava...
- E então, o que era aquilo na água?
- Calma. Depois começámos todos a falar uns com os outros, estávamos com curiosidade mas tínhamos medo. Até que o Tiago, que era sempre o mais atrevido, saltou para água e nadou até ao círculo. Lembro-me perfeitamente que depois de lá chegar começou a simular que se estava a afogar, só para se meter connosco. Mas depois de passada a brincadeira a expressão dele mudou! Parecia bastante satisfeito e começou a gritar para irmos ter com ele, que a água ali estava quente e que provocava uma “sensação altamente”! A princípio ficámos reticentes mas depois, um a um, fomos ter com ele.
- E depois?
- Efectivamente, a sensação de prazer, naquela zona do rio, era inexplicável. Aquilo mexeu connosco, começámos a olhar uns para os outros e parecia que conseguíamos ler os pensamentos uns dos outros, todos em perfeita sintonia, como se fôssemos um só. Não sei como vos explicar isto melhor, mas era como se o rio nos tivesse unido com um único propósito.
Foi então que reparámos que a miúda ainda estava na margem do rio. Não tinha vindo ter connosco. De repente, olhámos uns para os outros e percebemos o que tínhamos que fazer. Na mente de todos nós, sem excepção, passou a mesma ideia. Tínhamos que ir até à margem ter com ela.
- Ter com ela? Para quê?
- Desculpem, não me julguem, mas a ideia que nos passou a todos pela cabeça foi…matá-la!
- O quê? Mas vocês eram miúdos pá!
- Foi o rio! Não percebem. Nadámos até à margem e nem precisámos de falar uns com os outros. Eu agarrei-a pelos braços, o Pedro pelas pernas e o Tiago começou a despi-la. Percebemos imediatamente que a ideia era torturá-la. O Tiago foi buscar um pau e…desculpem, mas eu nunca mais tinha falado nisto…desculpem.
- Chico, o que está feito não tem remédio. Não vale a pena chorares. Ninguém te está a julgar. Já todos percebemos que há aqui um conjunto de atenuantes sobrenaturais para o que vocês fizeram. Continua, é importante sabermos tudo.
- Bom, depois o Tiago enfiou-lhe com violência o pau na vagina e começou a penetrá-la repetidamente…
- Meu Deus do céu!
- Foi horrível. Entre as pernas dela não se via já mais do que sangue. Julgo que ela desmaiou quando o Tiago finalmente lhe deu com o pau na cabeça. Percebemos que ela já não estava a oferecer resistência e largámos o corpo dela. Depois, sem pensar duas vezes, abrimos uma cova, com as nossas próprias mãos, parecíamos cães. Nas nossas faces, inexplicavelmente, via-se prazer e regozijo. Não se via ódio nem violência, mas sim um prazer estúpido, como se aquilo fosse só mais um jogo dos nossos.
-Estou parvo…então e depois?
- Depois nada. Voltámos ao rio para nos passarmos por água, ficámos deitados nas ervas até secar a roupa e fomos embora. Nunca falámos sobre isto, nunca discutimos o assunto e nunca mais ouvimos falar daquela pobre miúda.
- Desculpa, Chico, não sei o que dizer…nem o que sinto acerca disto…
- E como achas que me sinto…não voltei a pensar nesta merda até hoje! Estou aterrorizado! Acho que isto para nós foi como um episódio da nossa vida que esquecemos de forma automática. Digo-te, com franqueza, que é como se me lembrasse de tudo na perfeição, mas algo me impedisse de pensar nisso estes anos todos. Nunca senti remorsos até hoje…
- Era importante tentares lembrar-te de mais alguma coisa…o que fizeram está errado, mas acho que ninguém merece o que eu vi na minha banheira. Desculpem falar assim…
- Pois, mas isto é tudo o que eu me lembro…mas porquê, o que achas de tudo isto?
- Acho que a miúda não morreu…
- Impossível, ela foi enterrada! Eu vi!
- Vocês eram miúdos, enterraram-na perto do rio, onde a terra é argilosa certamente, talvez numa cova superficial…
- Não sei, desculpa, não sei…não me lembro…
- Tenta lembrar-te do nome, da família dela...vocês tinham que a chamar nas brincadeiras…
- Não. Do nome não me consigo lembrar…mas…
- Mas o quê?



- Mas sei que ela se transformou numa bela mulher…
- O quê? Mas como é que sabes isso?
- Porque ela vem ali, agora mesmo, na nossa direcção!
- Tens a certeza que é ela?
- Jamais esqueceria aquela cara…nem que passassem mais 20 anos! Ajudem-me por favor tirem-me daqui!


No caminho não trocaram mais do que duas palavras. O Paulo estava demasiado preocupado com a Gabriela, mais do que queria demonstrar. Não podia esquecer que um dos seus grandes amigos, e marido da mulher que viajava ao seu lado, acabara de morrer em circunstâncias trágicas e misteriosas. Era precisamente a vontade de desvendar desse mistério que agora o motivava.
Joana, por seu lado, estava ainda em choque. Toda a tristeza que lhe causava a morte do marido era abafada, ainda, pela estranheza de todos os acontecimentos. Não sabia o que pensar mas haveria de chorar e sofrer ainda muito, logo que tudo fosse explicado e o seu corpo e mente se unissem para chegar à terrível hora de constatar que agora estava só, porque o amor da sua vida jazia inerte numa banheira.

- Olha, aquele deve ser o tal Chico…
- Sim, ele deve estar à nossa espera.



- Boa noite!
- Boa noite. Chico? Certo?
- Certo. Muito prazer.
- Bom, eu sou o Paulo, e aproveito para apresentar a Joana, mulher…bom, agora viúva, do Pedro.
- Estou em choque. Não esperava por esta. Quando vi a chamada do Pedro pensei que era algum engano. Mais convencido disso fiquei quando ouvi a mensagem. Tentei ligar de volta para esclarecer com ele, e foi quando falámos…
- Aí reside para já um problema! O Pedro estava já morto há hora que tu dizes que ele ligou…
- Tenho aqui o registo da chamada, Paulo, verifica tu mesmo…

- Pois. Tens razão. E isso é só mais um mistério por explicar…
- Mas há mais?
- Nem imaginas…acho eu…conhecias o Tiago?
- Qual Tiago?
- Um que era vizinho do Pedro quando vivia com os pais…
- Ah, sim claro! Éramos todos amigos…mas porque é que falas dele no passado? Não me digas que também morreu!?
- Isso mesmo. O Pedro recebeu essa notícia hoje de manhã…
- Meu Deus! E então, como é que ele morreu?
- Não se sabe muito bem, mas isso não é o mais estranho…
- Então?
- O Pedro recebeu uma chamada do Tiago, imediatamente a seguir a ser informado da sua morte…
- Não posso acreditar! A sério? A dizer o quê?!
- Não me disse. Mas quase que posso adivinhar que terá sido qualquer coisa do género: “A seguir és tu…”.
- Achas?
- Ainda não perceberam…primeiro morre o Tiago e o Pedro recebe a chamada, depois morre o Pedro e tu recebes a chamada!! O próximo só podes ser tu, Chico!
- Porra, nem me digas uma coisa dessas! O que é que faço agora?

- Paulo?
- Sim, Joana.
- Fala-lhe da data…
-Ah, é verdade!

- Qual data Paulo?
- Quando estávamos em minha casa, a água da banheira onde encontrámos o Pedro começou a ferver…
- A ferver?
- Espera, deixa-me acabar…a água começou a ferver e embaciou o espelho. Nesse momento começaram a desenhar-se alguns números que formaram uma data.
- Que data?
- 12-08-1986



- Que cara é essa Chico?

- Chico!?
-Eu sabia…eu sabia…
- Mas sabias o quê?
- Isto ia acabar por se virar contra nós…
- Isto o quê pá?? Fala de uma vez!

- Chico? Conta-me tudo já! Estou preocupado com a minha mulher que desapareceu de casa e nem sei o que sou capaz de te fazer! DESEMBUCHA!!!
- Bom, vou contar-vos algo que nunca contei a ninguém. Mas acho que a situação exige que o faça. Vocês têm que saber.
- Estamos a ouvir, vá, conta lá…
- Em Agosto de 86, nesse dia, estávamos todos a brincar à beira do rio. Era uma coisa que fazíamos com frequência, especialmente nas férias de Verão. Aquela zona do rio era particularmente engraçada porque fazia um pequeno açude onde aproveitávamos para dar uns mergulhos ao final da tarde. Éramos miúdos, passávamos o dia com aquelas brincadeiras habituais, a apanhada, a macaca, bom vocês sabem, são da mesma geração. Era a nossa diversão…levávamos lanche e por ali ficávamos horas naquilo. Naquele dia, no entanto, estávamos todos longe de imaginar o que estava para acontecer…
- Oh homem, tu queres matar-me de curiosidade! Conta logo de uma vez!
- Desculpa, Paulo, mas ainda me custa falar sobre isso…mas pronto, adiante! Estava eu a dizer que aconteceu algo naquele dia que nos afectou a todos. Algo que, na verdade, viria a mudar as nossas vidas!


- Antes de sairmos de casa disseste que estavas preocupado com a Gabriela, porquê?
- Porque me pareceu muito estranha e…com muito medo do Pedro!
- Do Pedro? Mas porquê? Que mal lhe poderia ele fazer?
- Não sei. Mas algo me diz que vamos encontrar um Pedro muito diferente do habitual, muito alterado…
- Credo! Nem digas isso! O que é que podia acontecer para o deixar alterado ao ponto de a Gabriela estar com medo?
- Bom, Joana, vamos esperar para ver, já estamos a chegar…






- Meu Deus!
- Tens a casa virada do avesso, Paulo!
- Pois, isso já vi…mas onde estarão os dois? Gabriela? Estás cá?

- Pedro? Pedro? Está cá alguém?
- Paulo, acho que se estivessem já tinham respondido…
- Deixa-me ir ver lá dentro…espera aqui…



- Que cara é essa, Paulo? O que é que viste lá dentro? Eles estão lá?
- Só o Pedro.
- E então ele está bem? Onde é que ele está? Quero falar com ele…
- Acho melhor não…
- Larga-me Paulo, quero ver o Pedro, o que se passa?
- O Pedro está lá dentro…morto!
- O quê? Como? Não é possível…quero vê-lo…
- Acho melhor não o fazeres, Joana, não é uma visão bonita! Agora temos que chamar a polícia…não…Joana…não, não vás lá…fica aqui!!



- AAAAAHHHHHHHHHHHHHHHHH!!
- Eu avisei-te Joana, anda cá, não olhes para lá…
- Não! Não! Como é que isto foi acontecer Paulo? Como?

A visão de Pedro, morto, na banheira, não era de facto a mais bela. Ali jazia o seu corpo sem vida, roxo, com se ali se tivesse afogado. Uma ideia ridícula, na melhor das hipóteses, tendo em conta a quantidade de água. O couro cabeludo parecia ter sido arrancado cirurgicamente, bem como cada uma das suas unhas. Os olhos abertos, vítreos e secos, fitavam o espelho, como se ali estivesse algo de muito importante, ou como se ali estivesse a última coisa importante digna de ser vista em vida.

- Acalma-te, vá, chora à vontade….anda, vamos para a sala…temos que chamar a polícia…acalma-te.
- Não me quero acalmar Paulo! Como queres que me acalme?! Olha para o estado dele?

- Espera…olha para a água que está na banheira…está a borbulhar…
- Como? Não pode estar quente…e além disso há pouco não estava assim…
- Olha como ferve…é como se estivesse…já viste, a velocidade a que ferve?
- Já, e acho que não é por acaso…
- O que queres dizer com isso?
- Olha para o espelho! Está a embaciar…
- Sim e depois…
- Olha com mais atenção.
- Ah, estão a aparecer letras desenhadas…
- Sim, e já viste o que dizem?
- Espera…deixa-me ver…



12-08-1986
- É uma data, mas, Paulo, como é que explicas isto?
- Não sei, Joana, desculpa, mas não sinto que haja uma explicação racional para isto: o estado do Pedro, a voz da Gabriela ao telefone, e agora não saber dela, a água que começa a ferver, letras a desenharem-se no espelho…Joana, há algo de sobrenatural em torno de todos estes acontecimentos, apenas não percebo o quê, mas garanto-te que vou…

- O que é isto? É o teu telemóvel, Paulo?
- Não, isso não é o meu toque. Será o teu?
- O meu não é de certeza!

- Espera, olha ali no chão, é o telemóvel do Pedro?
- É, acho que sim! Vai lá ver Paulo, não me consigo aproximar…
...
- É um tal de Chico, conheces?
- Não, quer dizer…acho que não…
- Vou atender. Estou?

- Com quem é que queria falar?

- Com o Pedro? Como? A devolver uma chamada?

- Desculpe mas isso é impossível…

- Porquê? Porque ele está morto, eis o porquê!

- Impossível? Oh homem, estou a dizer-lhe! Como é que ele pode ter ligado há cinco minutos?

- Não, amigo, vai-me desculpar mas essa insistência já roça o desagradável…

- Como? Tem a certeza?

- Importa-se que falemos pessoalmente?

- Muito bem…sim…conheço perfeitamente…vou já para aí!

- Com certeza, até já.


- O que foi Paulo, quem era?
- Aparentemente, um amigo do Pedro, um amigo de há muitos anos…
- Porra, não conheço esse amigo dele!
- Já não falavam há alguns anos…
- E o que é que ele disse? O Pedro ligou-lhe?
- Há cinco minutos.
- Ambos sabemos que isso é impossível…
- Pois, mas há uma mensagem de voz…
- Impossível!
- Achas? Tão impossível como o que vimos na água e no espelho!
- Tens razão…e agora…vamos lá?
- Claro, quero uma explicação para o que tenho na minha banheira…e além disso quero uma pista para o paradeiro da Gabriela…ela desapareceu…lembras-te?
- Tens razão, desculpa, só pensei no Pedro e nem me lembrei que não sabes da tua mulher, que egoísta…
- Esquece isso, agora temos que nos despachar…tenho receio de não chegar a tempo…
- A tempo? Porquê?
- Por causa da mensagem que ele diz que o Pedro deixou…
-Qual mensagem? O que é que o Pedro lhe disse?
- “Prepara-te…a seguir és tu!”


- Porra! Mas qual Tiago? O que morreu?
- Sim!
- E vais ficar aí especado a olhar para o telemóvel? Não atendes?
- Sei lá, foda-se! Acabaram de me dizer que ele morreu e agora o número dele toca no meu telemóvel?!!
- Atende antes que desliguem!

- Estou?

- Estou?!

- Tem que falar mais alto! Não estou a ouvir nada!

- Porra! ESTOU! Está aí alguém?







- Pedro, então? Disseram alguma coisa?
- Aahm, não…não disseram…
- Então porque é que estás com essa cara?
- O quê?
- Estás branco! Devias olhar para ti! O que é que ouviste…
- Nada.
- Vai-te lixar, tu não ias ficar assim por nada! Diz-me de uma vez!
- Paulo, desculpa, mas dá-me o dia de hoje…eu não me sinto muito bem…depois desconta-me nas férias…
- Descontar, porra Pedro, essa conversa não é para nós pá…se queres sair vai à vontade…mas deixas-me preocupado…
- Não te preocupes, está tudo bem, mas lembrei-me que tenho um assunto para tratar e…
- Desculpa lá, mas tretas é que não! Não precisas de me mentir!
- Desculpa, tens razão. Olha, por agora não te posso dizer nada, mas prometo que depois te explico tudo. Devo-te isso.
- Ok, não digas mais nada, estamos combinados! Mas olha que depois vou-te cobrar, vais ter que contar tudo e com direito a jantar pago e tudo. Vá, vai lá e vê se te animas! Se precisares de mim…
- Já sei Paulo. Obrigado, és um amigalhaço a valer! Tenho que ir. Depois falamos.




- Estou?
- …
- Sim, é o Paulo. Quem fala?
- …
- Oh pá! Olá Joana, estás boa? Desculpa lá mas não te conheço este número.
- …
- De casa da mãe do Pedro? Então, mas aconteceu alguma coisa?
- …
- Porquê? O Pedro está bem? Aconteceu alguma coisa?
- …
- Desapareceu? Como assim? Pronto, pronto, acalma-te, não chores. Diz-me onde fica isso que eu vou ter contigo já.
- …
- Não te preocupes. Faço questão…vou deixar instruções à Gabriela para o caso de ele vir até aqui…
-…
- Ok. Oh que estupidez, claro que sei onde é, já aí fui uma vez com o Pedro. Vá…falamos depois melhor…até já.



- Olá Joana. Boa noite.
- Olá, Paulo. Ainda bem que vieste. A mãe do Pedro está lá dentro inconsolável e já me estava a fazer mal estar aqui com ela sozinha.
- Tudo bem, não me custa nada, sabes que também fiquei preocupado…
- Pois, isto foi tudo muito estranho, ele de manhã já estava estranho…
- Eu sei, no escritório estava igual, parecia apático…
- Parece que veio a meio da tarde aqui a casa dos pais do Tiago, aos gritos…
- Do Tiago que morreu?
- Sim, como é que sabes? Estavas ao pé dele quando a Dª Lurdes lhe ligou?
- Estava.
- Ele ficou muito abalado?
- Não, nada. Pelo menos com esse telefonema…
- Com esse porquê? Ele recebeu outro telefonema?
-Sim. E não vais acreditar de quem…
- Então? Quem ligou?
- O Tiago!
- O que morreu?!
- Sim.
- Isso explica muita coisa!
- Porquê? Explica o quê?
- Comecei a contar e depois não acabei…mas parece que ele chegou a casa dos pais do Tiago aos gritos, a perguntar pelo Tiago, porque ele tinha que estar vivo e a pedir para ver o telemóvel dele…
- E eles mostraram-lhe o telemóvel?
- Acho que não. Como deves imaginar ficaram bastante abalados!
- Coitados.
- Mas como raio é que o Tiago lhe ia ligar?? Está morto!
- Não sei, mas houve alguma coisa que ele ouviu do outro lado que o deixou muito abalado…foi quando me pediu para sair…
- Estou farta de lhe ligar e a mãe também, desde que soube o que ele tinha feito. Tem o telemóvel desligado. Estou muito preocupada Paulo…não sei o que fazer…isto não é nada do Pedro…
- Pronto, vá, acalma-te. Ele é sempre muito racional, certamente isto vai tudo ficar em pratos limpos. Olha, o meu telefone…

- É a Gabriela, desculpa, tenho que atender, o Pedro pode ter ido lá…
...
-Estou amor!

- Calma! Acalma-te! Mas ele ainda está aí?

- E como é que ele está?

- Como?

- É melhor eu ir já para aí! Não o deixes sair daí, nem que tenhas que chamar alguém!!

- Até já!

- Joana, vai avisar a tua sogra que o Pedro está lá em casa.
- E ele está bem?
- Bem, não sei…diz-lhe só que depois lhe ligamos a dizer como ele está…
- Oh Paulo, aconteceu-lhe alguma coisa? Diz-me por favor!
- Vamos embora. Não é com ele que estou preocupado…é com a Gabriela!


- Negro?
- Sim, negro! Olha para isto! Chega-te lá aqui ao espelho.
- Tens razão. Está um bocado negro. O que é que me andaste a fazer à noite?
- Eu!?!?
- Apanhas-me a dormir e apertas-me logo o pescoço! Eh! Eh!
- Estás a brincar mas isso está um bocado feio…
- Devo ter dado um mau jeito durante a noite…não te esqueças que tive uma noite agitada.
- Bom, vai lá trabalhar, mas logo temos que ver isso…




- Pedro! Pedro!
- Sim…hmmm…desculpa…
- Tu estás bem?
- Estou, desculpa, acho que estava distraído…
- Distraído?! Parecia que estavas em transe!
- Pois…desculpa…
- Primeiro, chegas atrasado, o que não é nada normal. Depois, parece que não estás cá. O que é que se passa contigo hoje?
- Nada, acordei um bocado estranho, é só isso…
- O que é que foi isso no pescoço?
- Nada, acordei assim…
- Acordaste assim…desculpa lá perguntar-te isto, mas…está tudo bem lá em casa?
- Hmm? O quê?! Que disparate, Paulo, está tudo bem…não acredito que penses que…
- Não penso nada. Vai com calma, fiz a pergunta como teu amigo e não como teu chefe…tens que admitir que o teu comportamento, juntamente com o estado do teu pescoço…deixa-nos a pensar…
- Ok. Mas podes estar descansado, garanto-te. Olha desculpa, deixa-me atender esta chamada. Se eu não atender a minha mãe vou andar alguns dias a ouvir das boas.
- Claro, claro! Eu sei como é, acredita…é melhor atenderes. Depois falamos melhor…

- Estou, Mãe…

- Claro que estou a trabalhar, onde querias que estivesse?

- De férias? Então eu não te avisava se fosse de férias para algum lado?

- Oh, Mãe, pronto, esqueci-me de te avisar daquela vez, mas não quer dizer que agora faça tudo sem saberes!

- Já sei, já sei…olha, Mãe, como te disse estou no trabalho…o que me querias dizer?

- O quê? O Tiago? Como?

- Porra, como é que acontece uma coisa assim?

- E ninguém deu por nada?

- Acho isso estranho! Mas quem te contou?

- Pois…não sei se terá sido mesmo assim ou não…

- Não, eu estou bem, mas isto deixa-me um bocado abalado, é só isso…

- Oh, Mãe, é claro que vou ao funeral. Apesar de estarmos mais distantes há alguns anos, o Tiago nunca deixou de ser meu amigo!

- Ainda não sei a que horas saio. Depois falamos.

- Está bem. Obrigado. Até logo.



- Pedro, desculpa, não pude deixar de ouvir…aconteceu alguma coisa?
- Eh pá, Paulo, parece que morreu um amigo meu, o Tiago…ainda não se sabe bem como…
- Olha o teu telefone….parece que hoje estás concorrido…
- Desculpa lá, espero bem que não seja outra vez a minha….eh, pá! Não pode ser…
- O que foi?


- Mas quem é que te está a ligar?
- Eh pá, de acordo com o que diz o meu telemóvel…é o Tiago!


Naquela tarde as crianças brincavam como se a vida não fosse mais do que risos cristalinos e estridentes. A felicidade tomava-lhes o rosto. Uma felicidade tipica de quem ainda não foi corrompido pelos tentáculos sujos da vida.
À beira rio, jogavam à bola, à apanhada, e a outros tantos jogos que com o passar dos anos deixam de fazer sentido, mas que, naquele fulgor máximo da juventude, revestem-se de uma magia extraordinária: a magia de sermos felizes.
Mas como em qualquer espectáculo, a magia é um objectivo atingido através de um meio pérfido e audaz: a ilusão.
Naquela tarde a felicidade não era mais do que ilusão porque algo estava prestes a acontecer que mudaria as suas vidas para sempre.
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- Pedro! Pedro!
- Hmmm...
- Acorda, Pedro, vais atrasar-te para o trabalho!
- Hmmm, mas o despertador já tocou?
- Há vinte minutos!
- Pronto, pronto, olha...já me estou a levantar...primeiro um dedo, vês?
- Ainda brincas!! Estou a ver se não te atrasas...
- Agora o braço...vês o braço? Não me posso levantar de repente! Eh! Eh!
- Muita piadinha, muita mesmo, senhor Pedro! Quero ver se também vais explicar ao teu chefe porque te atrasaste...primeiro com um dentinho, depois com essa lábia toda! Ah! Ah!
- Já estou a ir para o banho! Convenceste-me!
- Mas agora a sério, porque adormeceste, nem parece teu...
- Não sei bem, nem ouvi o despertador tocar, acho que tive um sonho estranho.
- Um sonho? Que sonho?
- Perguntas bem...não sei bem...acho que já não me lembro...
- Lembras-te sempre do que sonhas! Não te lembras ou não me queres contar?
- Oh, Joana, que raio de ideia! Não me lembro, que é queres que te faça?
- Só achei estranho, é só isso...
- Não penses mais nisso, agora deixa-me ir tomar banho, para não me atrasar mais.
...
...
...
...
- Pedro! Pedro! Não achas que estás à muito tempo no banho?
...
...
- Pedro!? Não me ouves a chamar?
...
- Pedro? O que é que se passa contigo? PEDRO!
- Hmm? Diz!
- Diz?! Diz?! Estou a chamar-te há minutos e tu estás aqui no banho sem dizer nada?
- Não te ouvi...
- Não me ouviste? Gritei o teu nome em frente à tua cara! Parecia que estavas hipnotizado! O que é que se passa?
- Não sei, se calhar adormeci...
- De olhos abertos?
- Sei lá! O que é que queres? Há pessoas que dormem de olhos abertos!
- Sim, claro, de olhos abertos, a tomar banho, com pessoas a gritar por elas...
- Joana, não dramatizes...vamos parar com esta conversa...tenho que me despachar...dá-me a toalha...
- Tudo bem, mas promete-me que vais com cuidado, estou a achar-te muito estranho hoje...
- Fica descansada, eu vou sempre com cuidado.
...
...
- Vá, girafa, até logo.
- Detesto que me chames girafa!! Que mania...
- Com esse pescoço alto e lindo...o que é que querias? És a minha girafinha...e além disso gosto de te ver assim, assanhada...
- Está bem, safa-te agora...
- Mantém-te assim até logo à noite! Prometes?
- Vamos ver...vá, agora vai embora, não te atrases...
- Tudo bem, até logo!
- Até logo!
...
- Espera lá, Pedro...o que é isso aí no teu pescoço?
- O quê?
- Tens o pescoço todo negro atrás!

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